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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O doentio (mas apaixonado) bailado no cimo do teu sarcófago

Hugo Gomes, 24.09.20

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As memórias são mais que meros refúgios em “Été 85”: São encarcerados, condenados às suas rígidas sentenças. Por entre a fotografia granulada de Hichame Alaouie, François Ozon parte de uma confissão – “Eu cometi um crime” – mas qual crime terá cometido o jovem de tenra idade Alexis (Félix Lefebvre)? A sua narrativa quase erudita e esforçada em atingir um certo tom de lirismo é o que basta para tentar (sublinha-se) convencer-nos da sua inteira culpa, para o espectador não será mais que uma hipérbole de emoções, uma prestação de contas para com o próprio relato em si.

É que para Alexis, o crime cometido foi a rendição das emoções, o constatar que o amor não tem género, nem mesmo direção, e mais que tudo, prazos de expiração. “Été 85” é o habitual conto de paixões repentinas sob o calor da estação e ao sabor das brisas marítimas, é um ensaio proustiano e saudosista para com aquelas mesmas memórias. A recolha e seleção destas faz-se por adereços, músicas e gestos ultrapassados, “pirosidades” contextualizadas que nesta tradução se convertem em hinos de luto, despedidas e reconciliações, em jeito de morbidez tumultuosa.

É o “Sailing” de Rod Stewart, por exemplo, a incidir-se como valsa ao luar, o réquiem do fim da adolescência e a vénia à maturação, um ciclo reconhecível e de fazer inveja a qualquer veterano que se preze (porque o inevitável desejo íntimo é que o tempo voltasse atrás em uma mera cantiga de “quem me dera ter novamente 18 anos”). Mas a impossibilidade desse retrocesso leva-nos a olhar com algum ceticismo às juras amorosas de Alexis ao seu Adónis antecipado, David (Benjamin Voisin), uma condescendência do nosso lado que reforça o exagero desta historieta de burgueses.

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À sua maneira é como recuperássemos “O Meu Caso”, de Manoel de Oliveira (1987), aquelas interpolações de egos em prol de um umbiguismo caótico. São as futilidades que operam como o vetor do mundo, para Alexis o seu drama é um cataclismo iminente, para o seu redor é somente uma miopia resiliente. Contudo, o relato do protagonista é também a sua afirmação num pré-construído abrigo intelectual e criativo, até porque o nosso apaixonado anseia ser escritor, a seu jeito, invocando os profundos devaneios de um certo cinema francês que sonha com palavras imperativas sobre as suas respetivas imagens.

Para Ozon, estas memórias retratadas têm um propósito, o de aliciar idiossincrasias dos seus heróis, dos velhos e passados mestres do seu “mundinho” chamado cinefilia. É por essas e por outras que encontramos uma relação algo abstrata entre as palavras e os seus significados, uma projeção e, consequentemente, uma materialização dessas mesmas correspondências que tão bem cabiam na “palma” de Truffaut.

Sim, há um toque “truffauteano” (o adjetivo nunca pegou e pelos visto nunca vai pegar), mais do que as comparações com o êxito de “Call me By your Name” (trocando aqui o fluvial pelo balear, mas mantendo o bucolismo) que tem sido erradamente associado. É Ozon, a deixar de lado os seus últimos fracassos para apostar naquilo que tão bem faz, mimetizar percepções e venerações como de ditos e ocultados.