O cinema português tem contas a ajustar com o seu “novo sangue”
Jovem, mas de um espírito terreno para com a tradição estética deste mesmo universo, comentando a fantasia em prol dos prazeres da carne (a revisitar a sua trilogia de curtas, “Carne”, “Boa Noite Cinderela” e “Coelho Mau”) e do visual eclético, mas enriquecido por uma câmara que acompanha o olhar das personagens e não do espectador, Conceição preparava a sua “cama” para uma estreia em “grande” no formato das longas metragens. "Serpentário'' assume como a sua estreia no elucidado “universo para crescidinhos“, porém, os prometidos atos sebastianos desvanecem perante um desnorteio. A bússola aponta para Norte, mas o realizador e também argumentista está determinado a seguir para Sul, erradamente conquistando o Oeste.
Ora, seguindo a lógica, aquela “cantigazinha” da experiência, Conceição demonstra neste novo palanque alguns dos grandes problemas da transição de curta para a longa – a logística, ou diria antes, a economia do seu tempo, ritmo, teor e sobretudo forma. O seu ecletismo é mais presente, vincado nesta sua (re)requisição de um anterior protagonista, João Arrais de “Coelho Mau”, aqui como o serpentiano que parte em busca do que resta da sua mãe num futuro pós-apocalíptico. Essa dizimação do mundo que conhecemos é parte de um segredos de deuses o qual não cabe ao espectador conhecer. Aliás, como a sua intenção de sublinhar a perspetiva da personagem e nunca a do público, algo deixado pela sua experiência nas curtas é indiciando nesta hipotética viagem pelo desejo.
Contudo, o desejo aqui é outro, não a luxúria que miramos nas blasfémias sacras (“Carne”), na literalidade da guerra entre classes (“Boa Noite Cinderela”) ou a perversidade de um incesto fantasiado (“Coelho Mau”), e sim o não condicionado reencontro, a esperança que funciona como fuel de uma jornada pelas ruínas do Velho Mundo. Pelo caminho, percebemos que este armagedão concretizado fracassou no seu expoente, a existência do outrora (a nossa atualidade) desapareceu, mas as imagens do que este Mundo era estão preservadas numa espécie de cápsula do tempo, os vídeos amontoam-se e formam uma constelação da nossa era (o cinema português parece estar consciente da extinção da sociedade e acumula as imagens como os seus tesouros memorativo, assim como fizera “Dia 32” de André Valentim Almeida).
“Serpentário” é nesses preparos um filme sobre a memória, a coletiva que se torna na ressonância da individual. Conceição presta-se a esse “amarcord”, regressa ao continente africano, onde nasceu, que abraça a sua camada autobiográfica para se estender acima dessa chamada coletânea do Mundo. É aí, que de certa maneira, o filme se perde – a bússola já não aponta mais e João Arrais caminha por entre escombros improvisados, civilizações arrasadas, contemplando a destruição para procurar a criação. Atmosférico? Sim, o que ganha força com um inesperado encontro, contrariando uma alusão a Mil e uma Noites, as fábulas das Arábias que infiltram nos vento de areia e na voz doce e trocista de Isabel Abreu (sobressaindo uma das grandes qualidades de Conceição, o seu trabalho de som).
Ou seja, ideias existem, investimento sim, mas o nosso realizador comete um salto maior que a perna, até porque não sabe o que fazer com o tempo que dispõe, como o preenche e, acima de tudo, como o tornar útil. Todavia, ainda não perdemos a esperança na sua figura. Carlos Conceição tem virtudes suficientes para “abanar” o nosso mundo cinematográfico.