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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

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A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

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"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

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"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

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Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

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"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]