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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Cinema da extinção, e dessa morte, a reinvenção.

Hugo Gomes, 09.01.25

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Em 2013, Raya Martin e Mark Peranson, numa proposta oscilante entre o experimental e o falso-documentário, contaram a jornada caótica e eclética de um realizador americano que se preparava para o seu derradeiro filme e, talvez, no contexto apocalíptico que o envolvia, o último filme de todos os tempos. “La última película”, exibido entre nós numa sessão competitiva do Leffest (nunca mais foi visto em território português), dividiu profundamente os poucos que o presenciaram: encantou alguns, enojou outros, mas sobretudo lançou os seus espectadores num malabarismo conceptual entre as infinitas possibilidades do cinema e as limitações que o ameaçam. Ao mesmo tempo, num tom quase sussurrado, debatia-se perante as portas do armagedão. Se a humanidade desaparecesse, o que restaria do cinema? Extinguir-se-ia como prova indissociável da nossa ligação carnal ao mundo, ou persistiria como algo alheio à nossa existência? Hipóteses delirantes, tingidas de surrealismo, sobre o que seria a última produção cinematográfica: como seria, e seria ela capaz de traduzir a nossa essência enquanto espécie?

Rafael Fonseca não se propõe a criar uma última obra antes do crepúsculo definitivo, mas “Quorum” surge como uma identidade em pura experimentação, como se fosse já tarde demais para o cinema progredir enquanto ato criativo futuro. Aqui, o cinema — apresentado sob a forma de um filme histórico em construção — é simultaneamente uma miragem e um gag prolongado, a busca incessante de um realizador pela sua obra, pela sua voz, num mundo que, em torno dele, parece recusar-se a oferecer as condições para tal descoberta. Filmado no Gerês, é a natureza que domina, soberana e implacável. Contudo, no meio da paisagem selvagem, um filme emerge subtilmente, através de uma narrativa esculpida em pedra, e pelo tempo - e mesmo assim respirando o imaginário.

Daí, como se pode ouvir através da leitura proclamada de Alice Ruiz (uma atriz que parece-nos saída do universo de Eugène Green), há um romance proibido entre uma freira e um soldado. Mas é apenas a imaginação que nos conduz até lá. Os atores, por sua vez, emprestam os seus corpos à encenação, mas as emoções, os gestos, os olhares — tudo parece pairar no limiar dessa fronteira, do romance e do não-romance. São os multi-terrenos da ficção a condizer com um cinema que se experimenta a si próprio. Fonseca não abdica da cinefilia que o atravessa; antes estica-a até ao limite, num ato de risco controlado de onde sai triunfante.

Quorum” é, simultaneamente, drama histórico, ficção científica, romance épico e ensaio memorialista — uma obra que celebra o ecletismo, desgastando os géneros, improvisando com ousadia. Funciona como tudo e funciona como nada. É um filme que se faz no prenúncio de um fim — um reflexo do mundo à beira do colapso. Mas Fonseca entrega-nos mais do que imagens ou sons: entrega-nos encantamento, muito deles pelo desconhecido como fenómenos do Entroncamento, aqui, rompendo os céus e iluminando de forma miraculosa as fases destes protagonistas (serão eles os três anjos do Apocalipse na espera do quarto?). Porque, no meio deste cataclismo silencioso, há o deslumbramento para com a natureza, é o que resta, e o que restará depois de nós, da nossa iminente ausência. Os garranos, selvagens e deslumbrantes, ecoam essa promessa do cinema como máquina de maravilhas. Fonseca captou-os num inventivo modo de distanciar-se da realidade, ou de acharmos dela a melhor representação. 

Há muito que o Fim do Mundo não parecia tão hipnotizante. Que últimos filmes nos trarão? Que últimas imagens guardaremos? Fonseca dá-nos uma resposta tangível: o cinema, mesmo nos seus estertores, continua a ser um gesto de criação, uma promessa de eternidade perante o inevitável.