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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O caos é bailado para Diabo sentir

Hugo Gomes, 07.02.19

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Estrategicamente, os provocadores conseguem ser melhores publicistas que os próprios na indústria cinematográfica e a verdade é que, uma vez invocando a provocação, sempre se será refém de tal postura. Tal acontece a cineastas como Lars Von Trier, possivelmente o mais gratificante e mediático deste ramo, mas uns degraus abaixo surge outro “exemplar”: Gaspar Noé.

Indivíduo caricato, de um certo sorriso malicioso, Noé ficou célebre pela debandada de espectadores que saiam furiosamente da projeção oficial de “Irreversible” em Cannes. O momento encheu as manchetes e a imprensa esfregava as mãos quanto ao episódio. Assim, a sua fama como enfant terrible se construía. Foram precisos sete anos para regressar aos grandes ecrãs sob uma inventividade narrativa [“Enter the Void”] que não conheceu o mesmo histerismo, apesar de condensá-lo a um certo estatuto de culto. Com “Love”, em 2015, sob as promessas da pornografia ingressada num enredo semi-autobiográfico, o cineasta regressou às luzes da ribalta e, novamente em estreia no festival da Riviera Francesa, conquistou o “prémio” de mediatismo-choque.

Gaspar Noé retornou assim ao ambiente ao qual está familiarizado, mas ao invés da Seleção Oficial, encontrou lugar na 50ª edição da Quinzena de Realizadores, um sinal de que o seu estatuto autoral foi reafirmado e relançado para circuitos mais visíveis da cinefilia. Mesmo num evento paralelo, o realizador teve a proeza de “roubar” algum do público destinado ao glamour do Palais, incentivando a imprensa para mais uma provocação à lá Noé. “Tu desprezaste I Stand Alone. Tu odiaste Irreversível. Tu espezinhaste Enter the Void. Tu amaldiçoaste Love. Agora experimenta Climax.”. Foi este o recado deixado pelo realizador aos jornalistas e críticos na véspera da estreia oficial, um filme na altura ainda mantido em perpétuo mistério (apenas era conhecida a protagonista, Sofia Boutella), que gerou um hype que movimentou centenas de curiosos.

Após a visualização, a crítica yankee (não só) teceu alguns elogios ao novo trabalho de Noé, algo inesperado que levou o próprio realizador a comentar a sua admiração e, de certa maneira, uma deceção aos seus projetados objetivos. Até porque a dita provocação dissipou-se, já não existe mais repugna, o que restou foi cumplicidade. Mas afinal o que aconteceu? O que levou um dos enfants terribles a ser um homem em reavaliação pela crítica que outrora tanto o desprezara? Para responder a isso, temos que ter em conta que “Climax” apresenta-se numa nova etapa na carreira de Noé, a do “clímax” propriamente dito, só que ao invés da força dramática ou trágica contida nas lições dos três simples narrativos, é o vazio na criatividade do realizador, ou seja, o seu dom de “irritar”. E para esse dom, Noé precisava de arquitetar melhor a forma de chocar o seu público, mas o resultado embicou noutra direção. Mesmo com a provocação pensada ao milímetro, o seu mentor demonstrou uma falta contextualização para com as suscetibilidades das suas vítimas.

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Assim, caímos de paraquedas num filme de dança, breakdance e toda a cultura alicerçada. Um projeto recreativo que se torna num pesadelo após alguém (whoddunit) ter sabotado uma sangria destinada à celebração, colocando LSD. A festa preparada converte-se num tormento sincronizado, corpos imperativos que revelam  violência depositada em cada cápsula carnal, convivendo com uma (ir)realidade alucinogénia que se figuram como “monstros” nesta bad trip coletiva. Tudo isto agita-se num prolongado plano sequência que limita um suposto filme de cerco minado com as marcas pelo qual Gaspar Noé contaminou, chamando-o desde então de seu Cinema.

A estética néon que compromete-se com uma câmara em estado de ecstasy, que nos sugere um repugnante point–of–view emocional, os tais fade outs que esquartejam diálogos e planos de maneira a inserir-se em falsos-raccords. É um filme à Noé com certeza, não há dúvidas, porém, até nisso, nos deparamos no desleixo. Enquanto as personagens se introduzem, literalmente, sob um cenário vintage de uma televisão anacrónica, capas de VHS estão expostas para fins decorativos. Mas os títulos aí evidentes revelam as marcadas influências deste projeto. De “Querelle” e “O Direito do Mais Forte à Liberdade” (“Faustrecht der Freiheit”), ambos de Fassbinder, a “Possession “de Zulawski, passando por “Salò” de Pasolini e “Um Cão Andaluz” de Buñuel (nota-se ainda espectros do apogeu dos filmes de cerco, “O Anjo Exterminador”), são os passos pelo qual este longo bailado se dança. Estranhamente, perdemos o jogo das referências após esse início, até porque os truques foram todos exibidos em pós-stage.

O que restou aqui foi apenas o movimento, o gesto e os corpos que apontam para a saída. Basta Gaspar Noé segui-la, a provocação precisa de ser afinada ou redefinida. A sua câmara súplica por essas novas aventuras. O filme, por sua vez, só pede um clímax … somente um clímax