Num mundo de loucos e imortais, ser búfalo é um arte!
Para cumprir a última vontade de Tomaso, o apelidado anjo do Palácio de Carditello (que contribuiu para a restauração e preservação do respetivo monumento), os "imortais" enviam a sua mais indecisa "marioneta", Pulcinella (Polichinelo), para encaminhar uma cria de búfalo, criada por ele, ao seu novo lar.
Nesta jornada por uma Itália fragmentada pelo enraizamento do neo-realismo e da fantasia gótica - “Bella e Perduta” - o cineasta Pietro Marcello ecoa uma prolongada alusão político-social de um país à beira do colapso identitário que, tal como a sua personagem corcunda, se encontra à mercê dos propósitos impostos pelos seus amos. É um surrealismo que aspira ao misticismo, com uma veia documental contagiada por toques fabulistas e de teor poético, funcionando numa fantasia cruzada e trabalhada sob uma maquete de experimentalidade. Porém, nada de realmente bizarro é concentrado nesta pintura a óleo viva, e sim, um claro paradoxo com o real representativo. Uma crítica subliminar que se desenvolve conforme o seu espectador e que se manifesta em conformidade com os seus ideais.
Embora a política seja o evidente combustível desta demanda pela forma, que muitas vezes prevalece sobre o conteúdo, é um regresso à figuração imposta pelo poeta Luís de Camões e o seu mais pujante trabalho - “Os Lusíadas” - onde a personificação de figuras pagãs serve como propósito a uma crítica estabelecida. Nesse sentido, é fácil identificar o búfalo e a sua infortunada sorte numa questão de "classes", neste caso, a mais baixa, o indivíduo comunitário que preza o seu destino nas mãos dos seus dirigentes políticos (os "imortais") como se fossem diretamente extraídos das distopias de Orwell. Sarchiapone, o nome pelo qual é batizado o nosso bovino, mesmo que nome é coisa que não lhe é designada, exclama que neste mundo "ser búfalo é uma arte", um artifício subestimado que poucos querem deter ou sequer sentir fascinados. Mas a crença em viver na dependência das massas e da força que estas podem adquirir é de uma coragem incontestável.
“Bella e Perduta” (“Bela e Perdida”), um título que tenta aludir ao monumento deixado pelo seu "anjo da guarda", também se identifica com os sonhos vencidos pelas massas que ainda se dignam a lutar pelos seus ideais, mortais frente a imortais omnipresentes, pelo meio marionetas a interpretar pontes de contacto entre os diferentes patamares. Político e fantasioso, não é todos os dias que nos oferecem estes dois ingredientes numa "cajadada só". Um filme a ver por dois motivos: conteúdo e forma.