Nós Viemos do nada para o nada
Nós Viemos / Nous Sommes Venus (José Vieira, 2021)
Texto escrito a propósito da sessão especial 6.doc (entre 21 e 27 de Abril, no Cinema Ideal).
Se existe uma razão válida (e nada saudosista) para invocar o passado, está no seu uso como diálogo ao presente e “Nós Viemos", a mais recente obra de José Vieira (“A Fotografia Rasgada”), documentarista português radicado na França, é um exemplo dessa “jigajoga” temporal e cautelosamente posicionada. Uma aposta arriscada digamos, essa, de contrariar as inúmeras vertentes populistas e delinear uma convergência experiencial entre os emigrantes portugueses dos anos 60 - muitos deles forçados a exilar para a França, deixando para trás um Portugal cada vez fechado, lançando-se à incerteza do território “estrangeiro” - para com os fluxos migratórios contemporâneos, principalmente provenientes da África e do Médio Oriente, pessoas vistas com “maus olhos” pelas fasquias mais conservadoras.
“Escavando” e integrando imagens de arquivo (se uma imagem vale mil palavras, eis a prova irrefutável à chamada “Fantasia Lusitana” do Estado Novo) e recolhendo relatos, ao jeito do seu modus operandis (sabendo que o mote da sua carreira encontra-se na sua experiência pessoal, também ele emigrante), Vieira montou uma história coletiva, atada nas suas pontas por uma sinceridade e humildade para com essas memórias e com essas “vidas” (a dignidade que muita delas ostentaram durante os seus períodos de desumanização). Nesse diálogo para com o passado, o documentarista intervém, ou, sem seguir pela via pejorativa do termo, “invade” tais confidências com a atualidade e com os “novos invasores”, através das histórias que desmistificam o mito do sucesso lusitano em terras francesas (a relembrar o seu polémico “Weekend en Tosmanie”, em 1985, cuja “realidade” era negada), encontramos o ponto-comum para com as vivências contemporâneas.
Refugiados, a condição hoje envergada em “embrulhos nefastos”, instrumentalizados pelo extremismo político, foi em tempos anexado à massa migratória portuguesa, ou seja, só quem viveu nessa pele pode por fim entender o que está em jogo. José Vieira traz com “Nós Viemos”, um exercício de empatia através do identificável. É o que realmente falta, não apenas aos dias de hoje, como também ao nosso olhar distante para com a História.
Jamaika (José Sarmento Matos, 2021)
E falando nessa empatia em causas sociais, “Jamaika”, filme de estreia do fotógrafo José Sarmento Matos (a fotografia mantém-se na coluna vertebral deste projeto), recorre a essa aproximação através do "vislumbre" arquitetónico do infame Bairro da Jamaica, no Seixal. Contextualizando os tempos de pandemia, onde o confinamento tornou-se na lei, somos remetidos àquelas pessoas "condenadas" às condições dos seus meios. Um bairro que em “praça pública” é de difícil emanação empática, caindo nas “armadilhas” da dita instrumentalização política. “Jamaika” não esconde a sua intenção de conscientização, mas as suas ferramentas não se ficam pelo uso pornográfico do miserabilismo, e sim da mostra miserabilista para indiciar no mais simples e direto para esta época altamente visual - as imagens acima do seu valor estético, como também de valor sentimental.