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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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No primeiro passo do Rei Lagarto

Hugo Gomes, 18.05.14

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É evidente que, na atualidade, a imagem de um homem vestido com um fato de látex, representando um lagarto bípede a destruir uma cidade em miniatura, não suscita qualquer evocação infernal, nem sinónimo é de terror visual; pelo contrário, tende a ser entendida como um ridículo involuntário. Contudo, numa era pós-Hiroxima, em que o Japão procurava erguer-se das cinzas, das perdas humanas e materiais, e da humilhação, o medo da radiação tornou-se um dos conflitos internos que os nipónicos ousaram enfrentar, transformando Godzilla no seu símbolo.

"Gojira" (título original) de Ishirô Honda é, acima de tudo, uma metáfora sobre esse medo, transcendente das suas influências e do estilo “trash” que se acentuou nas sucessivas sequelas. O monstro, com supostos cinquenta metros de altura, fruto da radioatividade imposta pela exploração nuclear, destrói metrópoles sem misericórdia, invocando os "fantasmas de um passado recente". E sob este manto de destruição, é-nos apresentado um conjunto de imagens que evocam espectros: um dos exemplos mais marcantes é o de uma mãe desesperada, temendo pela sua vida enquanto abraça fortemente as suas crianças. Todo o filme funciona como uma poética metamorfose dos eventos que culminaram na destruição de Hiroxima e Nagasáqui, as Sodomas e Gomorra do século XX. A bomba atómica e a radioatividade são representações dos pecados mortais.

Consciente de que um retrato fiel dos acontecimentos não era permitido no cinema japonês da época, para preservar e respeitar as memórias das vítimas, Godzilla, o lagarto gigante, tornou-se o meio viável de transmitir tais horrores e temores, sublinhando ao mundo que a tragédia não fora esquecida e que ainda era uma ferida por sarar, embora constrangida pela dignidade da nação. Infelizmente, além do misticismo invocado pela criatura antagonista (que viria a tornar-se um heroi nacional no Japão nos capítulos seguintes), "Gojira" é atualmente um filme que sobrevive graças a essa história envolvente e ao legado que concebeu.

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Na rodagem de "Gojira" (Ishiro Honda, 1954)

Hoje, é mantido como uma relíquia, um objeto digno de museu e de curiosidade mórbida. Sendo uma produção sem a pretensão de ir além do mero entretenimento lúdico (mesmo permitindo uma dupla interpretação), o seu orçamento reduzido limitava-o em termos de rigor produtivo. Assim, repleto de atores de segunda categoria (com a exceção de Takashi Shimura – um dos mais presentes na filmografia de Akira Kurosawa), personagens pouco desenvolvidas e subenredos ridículos, esta era uma obra B no seu termo mais específico, "massacrada" pelas sucessivas passagens do tempo. Todavia, os estúdios Toho encontraram neste pitoresco objeto subliminar - inspirado pelo filme de 1953 de Eugène Lourié (“The Beast from 20,000 Fathoms”) - um franchise a ser explorado. Sob esse efeito, nasceu um subgénero peculiar para os nipónicos que se tornou uma imagem de marca (o cinema kaiju), um produto inimitável preservador de uma identidade única.

Como tal, "Gojira", a ameaça que reduzia cidades a pó, converteu-se num heroi nacionalizado de um cinema rentável e de baixo orçamento, com capítulos e mais capítulos posicionando a criatura em embate com outras, todas elas representando anomalias de um mundo que atravessa a era nuclear. É dito que Kurosawa sonhava dirigir um filme deste mesmo universo, só que tal nunca concretizou pelo suposto incremento dos custos que a sua direção acarretaria, até porque "Gojira" e sua trupe foram direcionados para nichos específicos. A sua megalomania apenas foi descoberta pelos norte-americanos nas suas sucessivas revitalizações (1998, 2014).