No 11º Olhares do Mediterrâneo a revolução do dia-a-dia faz-se no feminino ... e com Cinema!
A Mulher que Morreu de Pé (Rosa Coutinho Cabral, 2024)
Falemos de Cinema, mas também de Mulheres, e da dissociação entre ambos. É com este mote que o Olhares do Mediterrâneo se apresenta, com uma programação forte em filmes e eventos paralelos que discutem o género, as possibilidades e a importância de desvendar um cinema pensado, feito e concretizado por mulheres. Ao ultrapassar a marca de uma década, agora com a sua 11ª edição, o Festival Internacional convida-nos novamente a percorrer as margens do Mar Mediterrâneo, explorando culturas e perspetivas audazes que culminam na arte que tanto valorizamos. Este ano, a Palestina surge não apenas como horizonte, mas como algo tangível através das imagens, já que este olhar traz consigo atualidade, urgência e subversão.
O Olhares do Mediterrâneo arranca no próximo dia 31 de outubro, transformando o habitual “Dia das Bruxas” numa celebração do feminino e da sua cinematografia. O evento prolonga-se até 7 de novembro com várias atividades e exibições em novos espaços, como o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa, o Goethe-Institut e a Casa Comum.
Silvia Di Marco, co-diretora do festival, foi desafiada pelo Cinematograficamente Falando … a descortinar as novidades, a programação de mais um ano e a essência desta importante montra cinematográfica.
O tema desta edição, "Revoluções Quotidianas", é uma escolha particularmente simbólica no ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril. Pode explicar como se deu a escolha deste tema e de que forma ele se reflecte na selecção dos filmes?
Este ano escolher o tema da “revolução” era incontornável para nós, porque os valores de Abril de democracia e igualdade fazem parte do ADN do Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival, assim como a ideia de que o quotidiano das mulheres que se empenham pela igualdade tem uma forte carga revolucionária: querer que as nossas vozes sejam ouvidas e não sejam apagadas, que as nossas histórias sejam contadas nos nossos termos e não por outros, é uma revolução que fazemos todos os dias e o Festival é uma forma de ampliar e concentrar a força destas revoluções quotidianas.
Aliás, não é a primeira vez que trazemos a Revolução ao festival. Em 2021, por exemplo, acolhemos a estreia do documentário “Elas também estiveram lá” de Joana Craveiro. Na programação deste ano uma ideia mais subtil de revolução norteou o programa, exactamente para captar esta ideia de quotidianidade do gesto revolucionário, que é o gesto de quem não se conforma ao status quo, seja qual for. Por exemplo, na primeira sessão de curtas-metragens, a 31 de outubro, apresentamos cinco filmes que questionam o corpo de mulheres e crianças, como ele é vivido e socializado. No documentário “The Desert Rocker”, da argelina-canadiana Sara Nacer, damos a conhecer ao público a vida de Hasna El Becharia, a mulher que transformou a música Gnawa, tradicionalmente tocada exclusivamente por homens.
Remember my Name (Elena Molina, 2023)
No filme de encerramento da parte competitiva do festival, “The Girls Are Alright”, da espanhola Itsaso Arana, revela-se o potencial revolucionário de um ensaio de uma peça de teatro numa casa de campo, onde quatro actrizes e uma encenadora usam da palavra no gesto extremamente “feminino” de partilhar vivências e tecer mundos possíveis em longas conversas imprevisíveis.
O Festival dá especial destaque ao cinema palestiniano, com a secção "Olhares da Palestina". O que motivou a escolha da Palestina como país convidado desta edição e qual a importância de dar visibilidade a estas cineastas, principalmente nos tempos incertos que o Médio Oriente vive hoje?
O Festival chama-se Olhares do Mediterrâneo e é impossível olhar ao e do Mediterrâneo sem ver o que acontece na sua costa oriental. Por isso, sempre nos posicionámos de forma clara relativamente à chamada questão palestiniana. Sem nunca deixar de reconhecer e defender o direito dos judeus a viver em segurança em qualquer lugar do mundo, incluindo Israel, consideramos que a opressão do povo palestiniano é inaceitável e tem de acabar já.
Os horrores de 7 de outubro de 2023, que o governo de Israel utilizou como carta branca para o genocídio em Gaza, é a razão principal que nos levou a decidir que este ano devíamos ter uma restrospectiva sobre as realizadoras palestinianas. É uma forma de homenagear a vida e o trabalho destas mulheres e ao mesmo tempo oferecer ao público uma oportunidade de descobrir uma cinematografia e uma história amplamente desconhecidas e criar oportunidades de debate. Os filmes que apresentamos são essencialmente filmes da diáspora. Porquê? O que obrigou e obriga estas mulheres a viver fora da Palestina? Muitos deles falam de memória e arquivos perdidos. Que memórias são estas? Porque os arquivos, assim como as pessoas, sofreram uma diáspora ou foram destruídos? Acreditamos que no momento actual é essencial conhecer o trabalho das realizadoras palestinianas para reconhecer a sua humanidade e estamos convencidas de que estes filmes oferecem também uma oportunidade única para ajudar a compreender como se chegou ao ponto em que estamos no Médio Oriente.
A programação inclui uma forte componente de filmes sobre migrações, colonialismo e racismo. Como é que o cinema pode contribuir para aumentar a consciência sobre estas questões sociais e políticas?
Dando a ver e “sentir”, através do documentário, da ficção, do cinema experimental, as múltiplas facetas das migrações, o colonialismo e o racismo. Apresentando narrativas diferentes daquelas que são habituais. Criando oportunidade de debate e encontro. Despoletar curiosidade, pensamento crítico, mas também empatia. O cinema tem esta capacidade incrível de transmitir conhecimento objectivo e ao mesmo tempo mexer nas nossas emoções, dois elementos essenciais para fomentar a consciencialização sobre questões sociais e políticas.
Com um total de 67 filmes de 28 países, como foi o processo de curadoria para garantir uma diversidade geográfica e temática, especialmente num festival dedicado a realizadoras da região do Mediterrâneo?
Muito trabalho e uma equipa dedicada! A maioria dos filmes são seleccionados a partir de uma chamada. Este ano recebemos cerca de 530 filmes, entre longas e curtas-metragens através desta chamada. Cada um foi visto e avaliado por pelo menos duas pessoas. Além destes, avaliamos mais cerca de 50 filmes que procurámos activamente, vendo quais passaram nos festivais mais importantes e os catálogos de várias distribuidoras independentes. Para os “Olhares da Palestina” contactámos vários arquivos e a selecção foi feita em colaboração com a equipa da Cinemateca Portuguesa.
Este ano, o festival traz várias estreias nacionais e até uma estreia mundial com o filme português "A Mulher que Morreu de Pé", de Rosa Coutinho Cabral, envolto da influência e pensamento da escritora Natália Correia. Gostaria que me falasse dessa estreia e a sua importância num festival como este?
Foi um achado! Nós estávamos já a fechar a programação e a Rosa Coutinho Cabral estava ainda a acabar de montar a versão definitiva do filme quando nos contactou. Pensámos logo que era uma oportunidade imperdível: homenagear a Natália Correia no Festival no ano do 50º aniversário de 25 de Abril tem algo de especial para nós. "A Mulher que Morreu de Pé" é um documentário-ensaio visual fascinante e a sua estreia no Festival será também uma oportunidade para pensar no legado da Natália como pensadora e artista revolucionária, que viveu e pensou de forma autónoma todas as questões, artísticas e políticas, inclusive na sua relação com o feminismo da altura.
A realizadora Farah Nabulsi durante a rodagem de "The Teacher" (2023) / Foto.: Omar Al Salem
O filme de abertura, "The Teacher", de Farah Nabulsi, aborda a complexa questão da violência na Cisjordânia. Que impacto espera que este filme tenha no público português, especialmente no contexto de um festival dedicado às revoluções quotidianas e no vivenciado zeitgeist?
Trata-se de um filme que, a nosso ver, mostra a situação atual na Cisjordânia de forma honesta e equilibrada, tomando claramente uma posição, mas sem desumanizar o outro lado, e questionando a violência como forma de luta. Gostaríamos que o filme oferecesse ao público português a oportunidade de conhecer uma realidade que muitos desconhecem e que atingisse o objectivo da sua realizadora, a britânica-palestiniana Farah Nabulsi, de levar os espectadores numa viagem intensa e emocional dentro das vidas dos protagonistas do filme, que faça reflectir sobre as escolhas e decisões que as personagens tomam e a realidade cruel em que essas decisões são tomadas.
Além das exibições, o festival oferece uma programação rica em workshops e debates. Pode destacar quais as iniciativas paralelas que considera significativas nesta edição?
Sem dúvida os debates sobre colonialismo. São dois, o primeiro na sexta-feira, 1 de Novembro, pelas 16h, à seguir à projecção do documentário “Maria India - Genealogia de Migração e Colonização”, moderado pela jornalista Joana Gorjão Henriques. O segundo, no domingo 3 de Novembro, pelas 18h, intitulado “Colonialismo/Decolonialismo e as Suas Representações”, no seguimento de uma sessão de quatro curtas-metragens que tocam de forma diversa este tema. Em Portugal é impossível pensar a revolução sem pensar no passado colonial do país, portanto estes debates são particularmente importantes.
Incontornável também o “Debate Travessias” deste ano, cujo tema será a migração de menores não acompanhados e contará com a presença da realizadora do documentário “Remember My Name”, a espanhola Elena Molina. Entre os workshops assinalamos “Género, Autoconhecimento e Empatia”, a 31 de Outubro, com Laura Falésia e André Tecedeiro, da associação Flecha, o workshop “Gender Stereotypes and Sexism in Films”, sábado, dia 2 de Novembro de manhã, organizado no âmbito do projecto “Olhares do Mediterrâneo with Eurimages For Equality” e, numa nota mais leve, a Oficina de Cantos do Mediterrâneo, no mesmo dia à tarde, que o ano passado teve grande sucesso.
Sendo o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal, quais foram as principais mudanças que notou no panorama do cinema realizado por mulheres ao longo dos últimos 11 anos? E para onde o Olhares irá “olhar” nas futuras edições?
Há cada vez mais filmes realizados por mulheres e a sua visibilidade vai aumentando, o que nos anima muito. Ao mesmo tempo, as mulheres continuam a ter problemas de acesso aos financiamentos mais substanciais, que tipicamente servem para poder realizar longas-metragens de ficção. O que é muito interessante é que aumenta a capacidade e a vontade das cineastas de se organizar ou criar redes para melhorar e reforçar as suas condições de trabalho, como é o caso da MUTIM - Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento aqui em Portugal.
Relativamente aos filmes que apresentamos no Festival, continuamos a notar que os que entram através da chamada para filmes variam muito consoante os anos e o zeitgeist do momento, mas há temas, nomeadamente os que dizem respeito às relações humanas e familiares nas suas múltiplas vertentes e manifestações que continuam a ser recorrentes, confirmando a necessidade das realizadoras de explorar o quotidiano e o privado como elementos fundadores do colectivo e do político.
Nos próximos anos continuaremos a olhar com muito cuidado para tudo o que acontece, cinematograficamente falando, mas não só, à volta do Mediterrâneo, especialmente ao Sul e ao Leste, mas não excluímos a possibilidade de alargar as nossas fronteiras a outros horizontes. Estamos a criar redes com vários festivais de cinema feito por mulheres e esperamos que em breve isto nos permita criar novas actividades, como, por exemplo, residências artísticas.
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