Nicolas Philibert: "Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência"
Sur L’Adamant (2023)
Nas margens do Rio Sena, em Paris, encontra-se ancorado o L’Adamant, mais do que um mero navio, um centro de dia que acolhe as mais diferentes loucuras, culminando-as numa salvação, ou amenização, por via da arte, seja de que forma for. Entre loucos e génios, a distância é mínima, mas é através dessas particularidades, que estes 'doentes', assim a sociedade os apelida como marginalização, se unem, partilhando vivências, ideias, hesitações e angústias com a sua própria existência. São ateliês de desenhos, cafeterias improvisadas, ou até um festival de cinema, Travelling, onde a passagem é prometida como breve. Não são os loucos de Lisboa, mas parisienses, aqueles que igualmente acreditam que “os rios nascem no mar” como uma alternativa à violência da nossa realidade.
O barco à mercê de todos, é o motivo do novo filme de Nicolas Philibert, documentarista de sucessos notáveis em França, que cá em Portugal estreou [comercialmente] com “Ser e Ter” (“Être et avoir”, 2002), sobre uma escola da zona rural francesa. Existe nele um interesse pelas pessoas que tornam possíveis as existências das instituições, e talvez a 'loucura' seja um método corrente do seu fascínio, aqui escutando, deliciando e sublinhando as singularidades de cada um de nós.
“Sur L’Adamant”, o seu mais recente filme (mas não o último), impactou as audiências da Berlinale de 2023, gratificando-se com o Urso de Ouro do certame. Chega a Portugal com essa faixa laureada, mas antes serviu de ‘desculpa’ para uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa, com o apoio da Festa do Cinema Francês. Nicolas Philibert esteve presente no seu dedicado ciclo, conversando com o público, abrindo as cortinas para os eventuais 'mundos' que mostraria nos seus trabalhos, desde o Louvre, a hospitais psiquiátricos, a jardins zoológicos até aos bastidores da Radio France. Assim segue a nossa conversa com o documentarista, cineasta da humanidade.
Tendo em conta grande parte do seu trabalho, e nomeadamente o seu recente e premiado "Sur l'Adamant", o ponto de partida para os seus filmes são as instituições. Assim, questiono-o: o que o fascina nas instituições?
Nada. Não são as instituições que me fascinam. As instituições, para mim, desempenham o papel de palco nos meus filmes, mais do que propriamente tema. Ou seja, não faço filmes como o Frederick Wiseman, que aborda didaticamente os meandros institucionais, eu adoto uma abordagem distinta. Utilizo as instituições como pano de fundo, uma moldura que contextualiza as narrativas cinematográficas que busco criar.
Conhece o cinema de Frederick Wiseman? Para mim, Wiseman transcende a mera análise institucional, é um cineasta dotado de profundo interesse pela arte e pela complexidade da condição humana. Que se interessa pelo rosto. Na sua trajetória, filmou milhares de rostos, que para ele são tão ou mais importantes que as próprias instituições.
Ainda bem que trouxe o Wiseman para a conversa, porque apesar de ele e de você partirem das instituições, as suas abordagens são opostas entre si. Wiseman é, sobretudo, observacional e, de certa forma, crítico em relação às instituições que aborda na sua ótica, enquanto o Nicolas humaniza as pessoas que integram essa estrutura institucional. Oferece um palco a estas pessoas, proporcionando-lhes um motivo de escuta. Aliás, diria mesmo que o seu propósito é a 'escuta' acima de tudo o resto.
Penso que há uma diferença profunda na abordagem entre o trabalho dele e o meu, no sentido que o Wiseman, diria, busca um certo apagamento, uma quase dissolução, ao passo que, de certa forma, opto por não esconder a minha presença nos meus filmes. Embora haja ocasiões em que evito minha própria imagem, não me submeto a permanecer fora do quadro. A voz, por vezes, torna-se no meu meio de interação. Estabeleço diálogos com aqueles que filmo. Quando me abordam, eu respondo. Ou seja, não procuro abertamente dizer “Estou aqui, eu sou eu". Não tento enganar os espectadores, sugerindo que a pessoa diante deles está sozinha. Em vez disso, instigo: “Ajam como se eu estivesse aqui”. Quando digo que Wiseman se apaga, não implica que ele esteja ausente. Reconhecemos imediatamente um filme de Wiseman, mesmo que fisicamente ele não esteja lá.
Nicolas Philibert na Cinemateca / Foto.: Hugo Gomes
Não lhe incomoda estas comparações?
Isso não me incomoda. Na verdade, tenho por ele uma grande admiração e carinho. É alguém que aprecio muito e que me inspira.
A sua longevidade é de facto uma inspiração [risos] …
Ele é um grande atleta, faz desporto e tem uma saúde de ferro.[risos] Além disso, trabalha imensamente, e é rápido. Ele faz, aproximadamente, um filme a cada 18 meses. Eu, ao lado dele, sou um ‘menino’, não tenho esse ritmo. [risos]
Sobre o “Sur l'Adamant”, cuja proposta nos remete a outro filme seu - “La Moindre des choses” (1997) - em que um grupo de doentes de um hospital psiquiátrico francês encena a “Operetta” de Witold Gombrowicz, gostaria de abordar a relação entre a psiquiatria e a arte, especificamente a psicoterapia. A arte pode ser considerada um dos remédios para uma mente doente?
Tenho o desejo de afirmar que, estejamos doentes ou não, sejamos vítimas ou não de distúrbios psíquicos, a arte nos conforta. A arte faz bem a todos nós, independentemente de quem sejamos. Pessoalmente, reconheço que, dada a minha atividade no cinema, devo muito à sétima arte, ao teatro, à literatura, à música, à pintura, à arquitetura. Acredito firmemente que a arte nos permite suportar o mundo, a sua escuridão, a sua miséria e violência.
Se não tivéssemos as artes e a cultura, o que teríamos para nos elevar? O que teríamos para nos fazer crescer? Para nos consolar? Nos confortar? O mundo seria insuportável. Posso parecer um quanto provocador, mas encaro as artes e a cultura como bens de primeira necessidade. Olhem para os pacientes-passageiros do L’Adamant. Alguns vêm diariamente, outros, mais espaçados, no entanto, participar de um workshop para desenhar, pintar, fazer música, quer sejam ou não talentosos para tal, são momentos de grande importância para eles no seu quotidiano. É o que os sustenta. É o que os mantém de pé. É o que os auxilia a viver. Ir ao L’Adamant, para alguns, é vital. Compartilhar com os outros uma atividade, durante um workshop, é essencial.
Um dos passageiros do L'Adamant afirma o seguinte: “Aqui há atores que não sabem que são atores.” Em seu filme “La Ville Louvre” (1990), também existe uma menção dessa natureza. Nicolas nunca repudiou esses termos performativos; aliás, chega mesmo a tratar estas pessoas como 'personagens', um território que muitos documentaristas evitam veementemente. Nesse sentido, é fácil encontrar em seus filmes pessoas que poderiam muito bem ser personagens ficcionais. Em L'Adamant, destaca-se um passageiro peculiar, uma alma abstracta que acredita ser, de alguma forma, um vínculo direto de Van Gogh ou James Dean, e acusa Wim Wenders de o ter plagiado no seu filme “Paris, Texas ".
Esse homem é Frédéric! Mas ele identifica-se conosco também. Nós, por nossa vez, temos a capacidade de nos identificar com ele. Por vezes, ao assistir a um filme, nos vemos refletidos em determinado personagem. Com Frédéric, essa dinâmica está muito presente, é uma questão muito central. É como se sua existência tivesse servido de inspiração para muitos cineastas e escritores. Como se sua vida fosse a substância primordial de inúmeros filmes ou romances. Ao seu redor, surge uma constelação de escritores e artistas dos quais ele diz que se inspiraram na história dele ou na história de sua família.
É um indivíduo muito interessante, existe genialidade na sua loucura …
É um homem extremamente erudito, possuidor de uma memória impressionante. Uma cultura literária, cinematográfica e musical muito vasta. Revela-se um homem multifacetado, expressando-se através do desenho, da escrita e da composição, personificando, assim, a verdadeira definição de artista. Encontra-se verdadeiramente imerso no seu próprio mundo, e é essa dimensão artística que lhe proporciona não apenas viver, mas resistir. Não está medicado, o seu tratamento é manter-se na vida por meio dessas ricas referências culturais. Ele ‘fabrica’ livros na sua própria casa! Há, por exemplo, um álbum dedicado a Rimbaud, contendo os seus próprios textos. Atualmente, está a trabalhar num volume sobre Wim Wenders.
Ele sempre carrega consigo um estojo de desenho, sendo uma ‘amostra’ do seu pequeno universo. Este estojo, juntamente com seu gravador de fitas cassete, tornaram-se inseparáveis. Ele grava variadas ‘coisas’ com ele. Voilá.
E esses livros não são publicados?
Não. É algo intimamente dele. Talvez quando morrer, vamos descobrir a sua verdadeira genialidade.
Frédéric em "Sur L'Adamant" (2023)
Alguma vez enfrentou hostilidade durante o processo de realização dos seus filmes?
Para dizer a verdade nunca fui recebido com hostilidade, embora seja possível haver desconfiança com a minha presença. No contexto da chegada de um cineasta a um determinado local, é bastante legítimo que haja uma dose inicial de suspeita. As pessoas envolvidas na criação visual nem sempre são, eu diria, motivadas por boas intenções; nem sempre são benevolentes e podem apresentar-se ‘selvagens’, até predatórios. É comum, ao iniciar um projeto, encontrar indivíduos que expressam claramente o seu desejo de não serem filmados. Considero completamente legítimo o direito de não querer ser filmado.
Por que deveríamos, de imediato, aceitar estar em frente à câmara? Quando chego a um local para realizar um filme, sempre enfatizo que ninguém está obrigado a consentir com a presença da câmara. A liberdade de decidir se deseja ou não ser filmado é um direito que todos possuem. Encorajo as pessoas a expressarem as suas preferências e a não se sentirem culpadas por isso. Nunca forço portas, respeito às decisões de cada um.
É sabido que já tem dois projetos na “manga”. Poderia-me falar sobre eles?
Quando iniciei o projeto de filmagem no L’Adamant, minha intenção era criar apenas um filme, no entanto, ao longo do caminho, dois projetos adicionais se delinearam, os quais senti o impulso de incorporar. Paralelamente, realizei filmagens no hospital ao qual o L’Adamant está vinculado, um hospital de dia. No entanto, surgiu o desejo de explorar também esse ambiente hospitalar, motivado pelo facto de alguns pacientes do L’Adamant estarem lá hospitalizados. Decidi, então, visitá-los e, com a devida permissão, iniciei filmagens, principalmente conversas entre pacientes e os seus respectivos psiquiatras. Nesses momentos, os pacientes partilham histórias bastante íntimas. Testemunhamos essas trocas, esses diálogos, onde o cuidador e o cuidado se entrelaçam em bonitas conversas. Este segundo filme está concluído e totalmente editado. Um terceiro filme está em desenvolvimento, uma ideia que surgiu durante a minha estadia no barco, centrada em visitas domiciliares realizadas por enfermeiros do L’Adamant aos pacientes.
Vale ressaltar que os filmes dois e três não se configuram como uma sequência direta. Prefiro pensar que os dois próximos filmes abordam dois outros aspetos distintos dessa abordagem à psiquiatria. Ou seja, exploram uma psiquiatria que busca auxiliar cada indivíduo na reconstrução dos seus laços, sejam eles com o mundo, com a cidade ou com a sociedade. Os três filmes são concebidos para serem apreciados em qualquer ordem, permitindo a visualização do terceiro sem a necessidade de ter visto o segundo, e assim fora.