"Nha fala" ... porque a Reboleira não é para todas as músicas
Havia da nossa terra dar-nos um fruto como esta Eliana Rosa, contudo, o feito da terra fértil está para lá de Cabo Verde, a “Manga d’Terra” como se vende e cantarola num sonho seu, e que Basil da Cunha (nesta sua terceira longa-metragem) o resgata como título. Só que o fruto foi importado, com a sua vinda, os seus sonhos, a sua ingenuidade, o brilho e cor, um bando deles que se amontoam após a tocada primeira nota. Porém, nota-se uma traição, coletiva digamos, nós, enquanto país, somos incapazes de receber esses delírios, encarando como isso mesmo. Nesse território, Eliana Rosa não passa de um número, de um corpo isento de alma para ser incompreendida, a crueldade ao seu redor a guiará a decepção atrás de decepções.
Novamente filmando nos bairros sociais da Reboleira, Cunha prossegue no seu plano de evasão, tendo cúmplice esta cabo-verdiana de adocicada voz, cujas dores resolvem-se por via de melodias que faz no interior do seu imaginário, um confortável abraço perante o seu fascínio pelo género musical. O filme seguiu-se como uma curta em resposta ao holofote de luz fundida que o realizador cometera em relação à presença feminina, até então, dos seus filmes. Consciente da sua fragilidade, solicita a ternura dorida de Rosa, num trajeto anti-trajetos do vendido sonho americanizado da ascensão musical. Portanto, a nossa protagonista que escapuliu de Cabo Verde com o intuito de encontrar em luzes lusitanas um palco seu, comete o maior dos erros humanos, a ignorância, aliada à inocência de quem uma prosperidade lhe é vendida com um estalar de dedos. Ainda na esperança de uma oportunidade que seja, feita fura-vidas pelo bairro, em contacto com as diferentes figuras do seu biotipo, desde homens crueis que a olham de cima para baixo enquanto iguaria de supermercado, a mulheres conformadas e unicamente vividas em relacionamentos tóxicos (surtos quase psicológicos fazem delas inimigos mais imprevisíveis que o esperado oportunismo dos homens), e por fim, a sociedade, intolerável e injusta … como bem sabemos.
Mas o que de esperançoso, mesmo que saídos seja a via, que “Manga d’Terra” colhe, é o facto de Basil da Cunha exercer o que havia cometido nas anteriores obras, propor uma escapatória à realidade das suas personagens, e neste caso usufruindo os efeitos clássicos associados ao género musical, no qual Rosa declara fascínio após presenciar na tela de um televisor (neste filme, por mais que uma vez, a televisão, como a janela do mundo para lá do bairro) a festividade cinematográfica desse universo. Quando a música entra e a voz da nossa trágica heroína aquece para o primeiro acorde, a sua realidade se transforma, torna-se num escape como se dita a tradição do musical, as cores manifestam contagiando o cenário como um onírico concerto (o ‘comparsa’ Patrick Tresch domina na sua posição de diretor de fotografia), aí Rosa é uma estrela, a estrela que sonhara, e Cunha, mais uma vez, com o seu artifício cinematográfico aponta a porta de saída às suas personagens, o fora daquela realidade que os impregna e os reduz a menos do que são.
“Manga d’Terra”, convém afirmar, é mais uma fábula suburbana que tudo faz para dignificar os seus protagonistas, nem que seja pela mais doce e confortante canção - “Tudo vai correr bem!” -, a incerteza, talvez, mas pela tela desejamos acreditar piamente.