Nas máquinas confiarei o meu futuro! Jia Zhangke em mais um retrato da China em movimento
Jia Zhangke reforçando-se como Jia Zhangke, bofetada “autoral” e fidelidade a um estilo que a China pavoneia diante de uma América cada vez mais submetida às pressões políticas ou ao entretenimento de massas enquanto nova colonização “cultural”. Poderia ser a justiça oriental frente ao Ocidente em decomposição … poderia … mas não o é. Zhangke é um dos raros autores ainda em plena atividade no seu próprio panorama. O restante, essa cinematografia chinesa, divide-se entre marginais que encenam uma espécie de realismo desencantado ou "cinema de guerrilha", e o "megamasso" a mimetizar vaidades à la Hollywood … muitas delas, pasme-se(!), apresentando-se como propaganda ideológica pouco subtil.
Mas falemos do nosso chinês em questão, e com ele de “Caught by the Tides”, filme que reafirma essas marcas, essa dentição cujo contacto nos leva a exclamar bem alto: “claramente, é Jia Zhangke!”. Se essa questão autoral nos remete a um reconhecimento estético, conceptual ou temático, com esta obra a tese prolonga-se com um devido ponto de interrogação: o que acontece às sociedades onde a política do trabalho acelera na sua própria mutação, com os trabalhadores a não conseguir acompanhar a reformulação dos mesmos?
A questão levanta-se como a persistência de um autor em plena observação das modificações do seu mundo, e como folha de papel vegetal, tracejar as similaridades e as referidas diferenças, para nos encantar com o óbvio, mas não fácil, retrato sociopolítico. Caminhamos para uma nova Humanidade, talvez mais distante, ou, na urgência de persistir nos seus traços, desafiar a ordem do progresso. Mas já lá vamos! Novamente requisitada, a atriz Zhao Tao guia-nos, sob a narrativa de três atos temporais, por uma mulher que opta pelo silêncio como forma de enfrentamento da realidade inconstante. Iniciarmo-nos neste “mundo” pela propaganda ao coletivo, enquanto país de uma só voz e direção, e terminarmos com o mesmo coletivo enquanto esperança libertária, curiosamente ecoando, ainda assim, numa só voz (e a voz enquanto brilharete narrativo a fazer-se ouvir).
Mas até lá dá-se um desaparecimento. Os anos passam, e é o rio Yangtzé que conduz a protagonista, em busca do marido em parte incerta, até ao inesperado - e, por sua vez, previsível - o fado da sua classe. A voz, ou melhor, a ausência dela, não constitui problema: Zhao Tao comunica como bem sabe, pela orgânica dos seus movimentos, pelos olhos afogados em desilusão infestosa e pelos escassos deslumbramentos ao contacto com o tecnológico: essa promessa de um futuro onde as máquinas, substituindo de forma determinante a mão-de-obra, libertariam a Humanidade da sua condição proletária e precária.
Já no último ato - num futuro ali ao virar da esquina, facilmente identificável - o trabalho e o respectivo estatuto social são substituídos por novas formas de empreendedorismo. Os “velhos do Restelo” nem sabem como se comportar perante a influência das redes sociais e os seus congéneres, enquanto a nossa trágica heroína encontra conforto em estranhos sintéticos. No final, as dores conjugam-se de maneira improvável. Jia Zhangke é um exímio pintor de natureza morta e de distopias descalcificadas, nisso não há duvidar, o seu toque mantém-se vivaz. Como tem sido na sua presença recente, os moldes resultam dessa escolha de embater o passado contra uma ideia de futuro, levando o espectador a refletir sobre onde mudou, ou a sentir-se para além da compreensão, diante da diluição temporal. E, à sua maneira, é político: cinema que sussurra ao ouvido os seus manifestos.