Não se trata de um homem, trata-se de um amor profundo
"O cinema precisa de ser falado" e é com obras como esta [João Bénard da Costa: Outros Amarão as coisas que eu Amei] que o diálogo entre o espectador e o grande ecrã faz-se em reflexo com o amor de outra pessoa. Manuel Mozos (Xavier, 4 Copas) incute essa paixão partilhada que dificilmente perde o seu inflamável calor da veneração, através de um envolvente registo poético que transfere a vida de um dos mais célebres (porém, ele próprio não assume), cinéfilos do nosso país. Se é bem verdade que a sua partida [em 2009] deixou a cinefilia mais pobre, aqui neste documentário preenchido de memórias, a sua riqueza identitária deixou uma herança bonificada, pronto a ser explorada.
Programador, crítico e diretor da Cinemateca-Portuguesa Museu do Cinema [a sua casa-mãe], João Bénard da Costa é uma figura incontornável para quem efetua a veneração cinematográfica no nosso país, ele foi um homem ligado ao misticismo do passado sempre em mudança e imutavelmente estampado através do retrato, as figuras que permanecem imortalizadas enquanto os nossos restos se converterem em cinzas e integram o substrato térreo. Porém, tal como se evidencia neste seu retrato, o corpo é simplesmente e dura descartabilidade, mas é a alma que vagueia por uma eternidade desconhecida mas sugestiva através do poder das imagens.
Nesse termo, "João Bénard da Costa: Outros Amarão as coisas que eu Amei" faz todo o sentido existir, e a decisão de Manuel Mozos em não construir uma singela biografia, e sim uma jornada pelo valor estético e as suas ligações primordiais com um esoterismo, não religioso, mas artístico. É pois, um filme sobre a arte, o argumento desse amor, e essa tentação cinematográfica sempre presente como um fantasma visitante, tal como é exaustivamente comparado com The Ghost and Mrs. Muir (Joseph L. Mankiewicz, 1947), um dos assumidos filmes prediletos de Bénard da Costa. É um reflexo sobre a vida além morte, com claros vislumbres à jornada de um homem feito, um eterno declarante da 7ª Arte, até aqui exposto como a forma mais viável de tornar imortal a respetiva imagem, outrora sombra de um ser vivente.
Essa constante autoanálise, uma narrativa intercalada entre a linguagem própria do cinema (Ordet, de Carl Theodor Dreyer, o seu "favorito" Johnny Guitar, de Nicholas Ray, e até mesmo a mentira prolongada da cinematografia de Lubitsch) e os seus escritos lidos pelo seu filho, funciona como uma das pinceladas que contribuem para este esplendoroso retrato, o retrato de Bénard da Costa, o seu íntimo hino de amor ao cinema partilhado por todos. Até porque, tal como indica o título - Outros Amarão as Coisas que eu Amei - Costa não está, nem esteve sozinho. Esta relação com o Cinema permanece intacta, cada vez mais amada, mesmo que as memórias tende em tornar-se mais distantes, mas com imagens projetadas em tela, que tudo torna-se numa razão de existência. Do Cinema com Amor!