Não há título: são só três dias de notas
Lynhida (Ana Nusan Dragan, 1989)
Decidi escrever este texto em pequenos momentos de pausa ao longo de três dias. Como que num “Tri Istorii” mas sem qualquer ligação a não ser pelo número (de histórias). Uma colagem que parte dos furos do quotidiano em que somos presenteados com a possibilidade (forçada) de retiro do mundo das obrigações, das frustrações,
As interrupções visíveis serão marcas.
Agora revejo os sentidos, as palavras não ditas, as vontades por concluir. Estes são momentos de enganos, rascunhos, (risquei) oportunidades. O pensamento reparte-se por diferentes interesses, vagueia por inúmeros estímulos (o que faço, o que vou fazer). Este é o modelo em que vivemos, em que vivo, em que estamos, em que estou. Formatei o texto para agradar ao olho, visto que a pressão da sua existência se acumula, se multiplica, se intensifica. Um pouco como estou, como estamos; como vivo, como vivemos.
Enquanto caminho entro no delírio do planeamento dos passos a seguir. Dos objectos a apreciar, das criações com as quais me deixarei ir. O que vi antes, o que virei depois; o que sinto agora, o que quero sentir. Permanentes rascunhos de vontades ilusórias de linearidades disruptivas do frenesim da rotina disfuncional. Estas são palavras de um corpo em desgaste constante, em potencial declínio súbito. Ao chegar ao metro tenho lembranças dos filmes e vídeos que encontrei nas loucas horas que gastei numa procura por algo que faça sentido (para uma investigação, para uma intenção, para uma programação, para uma crítica, para uma divagação). Lembro-me das curiosidades inéditas [de “Tereza” (1983)], lembro-me dos arquivos (quase sempre perdidos) que guardei no disco e que decidi escavar: “I am Somebody” (1970) e “Sapekhuri” (1985) . Aproveitei a ausência de internet no avião em que estive ontem para navegar pela aleatoriedade sobre as escolhas de um passado (não tão) distante (e também ele quase esquecido). Queria, na verdade, rever “Mariupolis” mas confesso que ainda tenho alguma dificuldade em lidar com o assassinato de Mantas Kvedaravicius. O meu primeiro professor de cinema na faculdade. Mantas que nos despertou para a análise crítica cinematográfica, que nos abriu portas para universos fílmicos desconhecidos numa época em que eu ainda indagava respostas sobre o percurso a seguir. Recordo-me das nossas sessões em comunidade, das nossas trocas de ideias, da sensação de (re)descoberta de uma arte com a qual sempre contactei mas sobre a qual nunca ousei pensar trabalhar. Mantas, com o seu ser (em todo ele) activista, humano, sensível, deu-nos o mundo das possibilidades.
Assim o recebi e o guardo comigo.
Coloco a máscara e deixo-me levar para mais um destino.
Antes de me sentar nos bancos de cortiça da carruagem, antes de ouvir os sons ensurdecedores das linhas, pensei que podia falar sobre o medo da escrita. Sobre algo que vai para além de "writer 's block” e que surge mais num lugar de quem presume o fracasso antes da execução. Não escrevo, não sigo impulsos de expressão, não dou espaço a fracassos presumíveis. Submeto-me ao mergulhar nas marés das impossibilidades, dificuldades impostas por um sistema que me diz tanto (e tantas vezes) que não pertenço, que não pertencemos, que não temos voz. Aqui considero mais uma vez a reformulação da premissa inicial. Mas já vai tarde. E a carruagem chegou.
Leio “Quem quer ser hoje? Seja você”. Volto às notas enquanto deambulo pelos percursos entediantes de obrigações pós-laborais. Slogans de vidas por concluir, que no contexto de uma publicidade nos contactam como que num gesto de venda de novas visões (sigo no jogo de desconstrução de marketing de oculistas). É difícil sermos quem somos neste espaço de vulnerabilidade e intimidade de leituras. É difícil termos reconhecimento neste espaço de formas ditadas, de registos marcados, de meios congelados num tempo que ficou para trás.
Enquanto espero para ser atendida (não passou assim tanto tempo desde há bocado), penso no quanto que se proclama o fim, a morte da crítica. Digo: estamos aqui. Estaremos a ser ouvides?
Novo dia e já à espera. De uma conversa, de um mote, de uma resolução. Já pouco nos agarra. Fica a vontade de superar. Um impulso de persistência na insistência da permanência neste lugar que se alcançou, que se mantém, que se
Depois da conclusão de mais um momento, tomo pela primeira vez a posição de pessoa sentada à frente do computador. Tudo aquilo que está para vir nas próximas horas, nos próximos dias, nas próximas semanas enrola-se num novelo do qual não me consigo desligar. Ao menos hoje consegui meter a roupa para lavar. Espero que a máquina termine, para estender peça a peça, enquanto penso, penso. Apercebo-me de que esta outra máquina não desliga. Não era isto que queria? Não. A turbulência dos dias demonstra, a cada momento, a sede de ficar, de não deixar o tempo escapar, em busca de um dia em que as linhas se cruzem e formem um estado (sempre) desejado: de estabilidade na concretização. Por instantes olho de longe - já se sabe que tenho medo das palavras - para as formas aqui delineadas, e vejo os modelos dos dias. Estou cansada. Só espero que este pedaço sincronize com as notas do telemóvel. Não quero perder este bloco (não tão) valioso e ter de (re)começar. Agora esbocei um sorriso (enquanto a máquina ecoa pela casa) por ter feito uma descoberta que servirá de mote para algo (um texto, uma programação, um conhecimento adquirido?). No meio de pesquisas que aliviam a minha mente (nesse gosto pela escavação), deparei-me com o trabalho de Ana Nuša Dragan num arquivo de vídeo online. Comecei por “H20”, uma curta-metragem de 2 minutos de 1970 em que o registo visual explora (olha o spoiler do título) diferentes movimentos de toque da água: desde o mar, às bóias, à boca de quem bebe um sumo com as ondas por trás. Um simples gesto de apreciação de um elemento que nos rodeia, que nos constitui, com uma banda sonora ritmada mas quase dissonante. Repleto de (ditas) imperfeições, (de ditos nadas,) este filme termina sem uma conclusão. Vejo no texto da descrição que foi filmado durante a escola de cinema de verão em Koper, em 1968. Sinto que foi um momento de aglomeração de pequenas contemplações, de breves curiosidades de um ambiente que rodeava Dragan. Nessa água ficou, para mim, no entanto, um certo interesse para chegar mais perto. Assim o fiz, graças às possibilidades lançadas pelo arquivo. O que me traz, desta vez, à cabeça uma conversa que tive num festival nos Açores com Pedro Morais, crítico de arte e curador que vive em França. Falava-me de uma investigação que tem feito e partilhou comigo uma curiosidade que me levou à pesquisa [mas, dessa vez, a uma frustração que (penso e espero que) me levará a alguma resolução]. Falou-me de Virgínia de Castro e Almeida: escritora, produtora e cineasta. Mais uma - entre tantas - mulheres apagadas dos livros da história do cinema. Mais uma - entre tantas - mulheres esquecidas no tempo. Mais uma - entre tantas - mulheres de quem me quero aproximar mas em que a procura de poucos resultados traz. Vou parar, para já, por aqui porque tenho de estender a roupa. Mas sinto que já estou a chegar a algum lado. Esboço um tímido sorriso desta vez. É melhor não reler e ficar assim.
Vim a correr para poder terminar pelo menos uma das várias (tantas!) ideias que tenho na mente. A inacessibilidade a vidas, a obras demonstra, por um lado, a falta de reconhecimento da importância no passado. Nem sempre é possível aceder àquilo que se pretende porque, às vezes, não está lá. A ideia de perda histórica, reconhecendo a dificuldade de existência e execução num período de domínio de só de alguns é de um corte profundo. De longe, sente-se bem perto. Os tempos mudaram mas o caminho ainda está a ser traçado. Ouvia a voz de um dos meus colegas de casa a ecoar pelos corredores das traseiras do prédio e pensava no quanto que queremos (e precisamos d)essa projecção. A força está cá (existe! persiste!) mas os espaços estão saturados. A nossa voz, o nosso olhar, as nossas ideias tal como as vossas vozes, os vossos olhares, as vossas ideias deviam (e mereciam) coexistir. Para uma salvação do nosso caminho conjunto - enquanto críticos, leitores, cinéfilos, cidadãos, indivíduos. Perpetuam-se, no entanto, apagamentos do passado. Mas tal como se escava, se (re)descobrem pérolas, aqui também se escreve, se (re)descobrem fórmulas. O futuro terá de estar nas nossas mãos, pois o presente (ainda) não nos pertence.
Mariupolis (Mantas Kvedaravicius, 2016)
Olho para o fundo de ecrã do meu computador e vejo uma referência de Parajanov (des)construída por Ana Nusan Dragan. Lembro-me das conversas, dos colóquios, das conferências em que tudo acaba por passar por menções dos conhecimentos cinéfilos à base de estruturas designadas como as fundações do cinema. Confesso que, pessoalmente e fora raras excepções, evito colocar em comparação obras ou cineastas. Comparações essas que terminam sempre na visão daquilo que foi dit(ad)o como sendo a história do cinema. Existem referências inevitáveis, não retiro isso. Mas se estamos aqui para reinventar, para desconstruir, poderemos começar a olhar para aquilo que sempre foi considerado à margem? Poderemos procurar a criação de uma história mais digna, mais justa, mais fiel do mundo? Penso no caso de Nutsa Gogoberidze, que é um entre vários (tantos!) exemplos de uma cineasta pioneira no cinema. Mulher, do Leste, que fez somente um filme (por questões relacionadas com o seu género na época e contexto sócio-político em que se encontrava). Não é viável (nem possível) colocar tudo na escrita da história. Mas também não é só através de uma compilação de seis horas com excertos de filmes realizados por mulheres que o problema fica resolvido. Não é só por termos ciclos dedicados a mulheres no cinema que o problema fica resolvido. São passos necessários, mas não é possível descansar: é preciso mais. Urge uma desconstrução diária dos impulsos normativizados. Urge uma atitude (ainda mais) activa de financiamento para a produção de obras, de desenho de programações conscientes, de mudança do paradigma dos indivíduos que assumem posições de chefia. Neste campo de mudança, a crítica também entra em jogo: e é necessário - ou até fulcral - uma alteração que ultrapasse as dinâmicas dos meios (ditos) alternativos e que entre nos meios (ditos) tradicionais.
Tive de sair.
Estou a correr contra o tempo. Meto a máscara. Perdi o comboio. Deixo as notas em aberto - em suspenso, na parte de trás de outras aplicações, interações que pedem a minha atenção - para o caso de ter algo mais para dizer. Mas penso que é esse um dos problemas: achar que há sempre algo mais a dizer, que nunca chega a conclusão. Será talvez uma potencialidade, no entanto? Aquilo que urge o acto de expressão (mais ou menos imediata)? Chegou o comboio.
Apareceu uma citação de “inspiração” de uma aplicação a dizer “Run Your Own Race”. Acho que todes temos uma relação de “ah, pois é/ew” com este tipo de frases baratas. Acho também engraçado como o algoritmo apanha a quantidade de vezes em que falo e escrevo sobre correria, sobre esgotamento. Agora que estabeleci esta relação com as notas
Parei. Avancei. Este lado de pausas com (outro) significado tem ajudado num certo desbloquear das sensações que reportei no início. Esse medo, essa incapacidade de escrever para algo sem rumo, sem sentido. A divagação a que me propus tem preenchido certos vazios e despertou algo curioso: uma corrente de desinibição de filtros, de edições, de revisões. Não acredito no extraordinário do imediato, mas reforço a minha fé na deambulação.
Aproveito a brecha no cimento para olhar para o Tejo. Uma linha cheia de azul que o Sol faz reluzir de uma forma em que não consigo evitar o deslumbramento. Elementos da simplicidade (sempre) presente. Com deficiência auditiva, com olfacto em declínio, agarro-me às visões propostas pelo mundo. Prendo-me àquilo que me impulsiona na leitura de um universo que não compreendo, mas que me move. Aplico esta filosofia na arte. Dedico este estado à experiência fílmica.
Deixo-me estar nas correntes. Só queria mais espaço, só queria mais tempo. Mas terminou.
Cuidado com os degraus.
Apoiar sobre a barra para abrir.
Bebi um café para me refrescar. No elevador oiço um solo de violino que me transporta nesta elevação de poucos segundos. Tudo isto volta para o plano de fundo.
Por vezes ligo-me ao mundo e observo um aparato que me confunde. A minha bolha, no entanto, dá-me um refúgio ilusório, uma segurança transitória. Todas as questões que coloco são repetidas, ecoadas por mentes sintonizadas. As minhas questões são as nossas: mas quem nos vê? Eu não leio muito desde a faculdade. Talvez se note pela fragilidade da escrita, talvez se denote pela escassez de argumentos, talvez se desmonte no futuro. A minha bolha não é a vossa: venho aqui num gesto de tentativa de aproximação, de contacto. Um toque superficial, desleixado, sem pudor mas repleto de boa vontade.
Imagino que só chega aqui quem revê o texto. Quem diria que havia tanto nada (ou tudo) para sair? O texto nem está a actualizar no computador para poder olhar para a mancha.
Chegada a casa, depois de um longo dia que está longe de terminar, sei o porquê de deixar até ao último momento a lavagem da roupa: a ritualidade do banal soa a perda. Talvez também porque implique um tempo em que, após a finalização da tarefa, seja necessário revertê-la. O roçar dos limites de concretização é o comum. Existe aquele sentido de adrenalina misturado com desculpabilização de possíveis falhas quando se evita a entrega ao máximo. Aplico isso à vida, ao trabalho, à escrita. Este texto é o resultado - ou a materialização - disso mesmo. Pouco ou muito diz, mas tenta acima de tudo apontar para pequenos relances de possíveis notas relevantes. Cada uma estendida, aprofundada, estilizada daria, talvez, mote para uma dissertação. Mas aqui pretendo demonstrar os efeitos de um sistema que nos exige uma constante (in)actividade. Parar é perder; perder é deixar de existir. Mas o que falha mais do que o humano é o que está nas manchas não preenchidas. A incapacidade de dedicação. Talvez esta generalização seja mais uma vez uma forma de desculpar uma situação individual. Mas os radares, mesmo que em permanente captação, conseguem registar uma fadiga natural deste mundo (quase insano). É nestes moldes que a arte da crítica (pode) acontece(r). A poesia está nestas prosas do concreto, a magia está na arte da ilusão.
*Texto da autoria de Teresa Vieira, crítica de cinema, programadora e jornalista cultural. Podemos encontrar o seu trabalho na Antena 3, À Pala de Walsh e no Cineuropa.