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Nanook: A fria génese do documentário

Hugo Gomes, 29.05.20

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Nanook of the North (Robert J. Flaherty, 1922)

 

 

Comummente existe uma divisão aparentemente “inseparável” no Cinema e a sua relação com as imagens captadas. Através da sua mediação podemos salientar a ficção e o documentário, esta última estância, aquilo que poderemos chamar uma metragem que trabalha sob a realidade imposta, não mediada e “verificável por outras vias” (Jacques Aumont e Michel Marie). Certamente todo este conceito de imutável tratamento de imagens, as “puras” assim resgatadas da sua fonte, são discutíveis, tendo o documentário genuíno (uma ideia somente projetada pelo senso comum generalizado) originando as mais diferentes visões, seja o verité (uma exposição a nu do seu procedimento e intervenção), seja pela docuficção (ou docudrama), que requer na diluição das suas esferas cinematográficas (uma prática mais que valorizada no panorama português).

Contudo, chegando à génese do documentário propriamente dito, não poderíamos deixar de mencionar o seu “Pai” - Robert J. Flaherty – explorador de bom grado que encontrou no cinema uma via narrativa das suas viagens e experiências. Mas antes de Flaherty, já o Cinema, ingenuamente dando os seus passos cruciais, demonstrava essa necessidade pelo real como um efeito de afirmação. Os Lumières desbravaram inauguralmente esse território com os seus retalhos de vida, meras passagens de quotidiano imortalizadas em película e mostradas como uma prova da capacidade do seu cinematógrafo. Mas depressa os irmãos iniciaram a manipulação dessas mesmas imagens, seja pela aplicação do rewind ou fast forward, seja pela replicação como é o caso do famoso gag do jardineiro, encenado vezes sem conta durante as digressões dos aclamados fundadores do Cinema.

De Lumière seguiram os seus “filhos” que se lançaram a quatros ventos no resto do globo, coletando os diferentes quotidianos, delineando o mundo contemporâneo a descobrir e a ser descoberto por aquela nova plataforma. Mas aquilo que os Lumières visionaram e trabalharam são conhecidas como “atualidades”, uma exibição das capacidades tecnológicas do que propriamente artísticas. Nesse sentido saltamos para Flaherty e os seus caçadores do Norte.

Nascido perto da fronteira dos EUA e do Canadá (16 de fevereiro de 1884), Flaherty filmava as paisagens indomáveis do Norte Selvagem e dos respetivos habitantes para posteriormente projetá-los em sessões privadas com algum êxito a partir de 1916. Mas um acidente com cinza de cigarro alterou por completo esse rumo, queimando os 9 km de negativos, obrigando com isso Flaherty a refilmar o seu projeto. Foram precisos alguns anos para que pudesse angariar fundos para a sua expedição, regressando dela com a considerada obra de arranque ao universo documental – Nanook of the North (1922) – onde seguiu uma família de inuits (o que vulgarmente, e popularmente, chamamos de esquimós) tendo como figura central o caçador Nanook.

Automaticamente o filme foi um sucesso comercial e de crítica, reafirmando a habilidade de Flaherty, não sendo antropólogo, em retratar o quotidiano austero e igualmente afável deste povo nómada encaixando numa narrativa trabalhada. Mas cedo também surgiram as críticas que afastavam Nanook da sua genuinidade. Primeiro, pelo ponto mais leve, o nome do protagonista, que na realidade era Allakariak, cuja alteração deveu-se à criação de um título mais identificável às audiências ocidentais. Depois existem os clichés emaranhados no retrato, os inuítes são descritos silenciosamente no filme como seres sem cultura focados no seu permanente estado de sobrevivência. Flaherty pretendia filmar “selvagens” sem contacto com a dita sociedade moderna, o que a esta altura os inuítes conheciam perfeitamente esta cultura paralela. E isto leva-nos à sua maior controvérsia – a sua encenação.

É possível verificar através do filme, o protagonista a receber instruções do seu realizador, a indicar e moderar o seu comportamento selvagem como é no caso da sequência do mercado, onde Nanook (supostamente) vê um gramofone pela primeira vez e tenta comer os discos. Ainda há a questão da família, aquela visualizada no filme não é a sua, mas uma atribuída para efeitos estéticos. Contudo, os defensores, nomeadamente o crítico e teórico André Bazin sublinham a capacidade de Flaherty em explorar um território desconhecido das imagens impostas por uma realidade em trabalhá-las de um modo pericial, incidindo-o numa linguagem percetível a todos e didático sem assumir esse didatismo.

 

qBCySj9arqJPixLUStI4aIw67VB.jpgMoana (Frances H. Flaherty & Robert J. Flaherty, 1926)

A verdade, é que perante esta discussão de o que é real e fabricado, Nanook of the North é uma valiosa mina de imagens que permaneceram intocáveis até à atualidade, seja ela, a caça à morsa, uma implacável e angustiante sequência que encontra novas luzes nestes novos e sensíveis tempos, seja a construção do igloo que reforça a estrutura familiar de Nanook. Convém, afirmar que uma das mais concretizadas virtudes do filme de Flaherty é a constante demonstração de afeto do caçador em relação às suas crianças. Infelizmente, no final de Nanook of the North, a passagem destes para mais uma etapa de sobrevivência adquire um novo significado perante a tragédia (o protagonista e a sua família morrem durante uma tempestade pouco depois de terminarem as filmagens).

O efeito Nanook abriu portas para um novo conceito de abordar aquilo que o nosso redor nos oferece, criando o conceito que ainda hoje conhecemos como documentário. Para Flaherty foi também o início de uma jornada tão sua. Depois do Norte Selvagem, o realizador e a sua mulher – Frances Flaherty – aventuram-se no Paraíso dos Mares do Sul com Moana, o Homem Perfeito (1926), o qual reinventam o procedimento utilizado em Nanook, acompanhando um jovem polinésio até à sua estabelecida fase adulta. O filme, encomendado pela Paramount Pictures, que na altura recusou distribuir Nanook nos cinemas por não corresponder aos “parâmetros do espetáculo”, tornou-se, segundo o próprio, a obra mais pessoal de Flaherty e aquele que o perseguirá até então. Trabalharia com F.W. Murnau no argumento de Tabu (1931), um romance proibido na ilha de Bora Bora, e ainda na fase embrionária da adaptação do livro de Frederick O’ Brien – White Shadows in the South Seas (livro que inspiraria Flaherty a realizar Moana) – na versão assinada por W. S. Van Dyke em 1928.

Quanto ao retrato dos inuítes, passaram 98 anos e obtivemos um documentário de investigação aos resquícios destes povos do norte em Anerca, Breath of Life, de Johannes e Markku Lehmuskallio, que fora apresentado em Competição no Visions du Reel. O filme que salta para diferentes regiões geográficas coletando o que restou culturalmente, assim como a diluição dos “grandes caçadores” neste mundo modernizado e globalizado, é um Nanook of the North possível destes tempos em que o documentário não se reinventa e a etnografia “exótica” é mais que remoto.

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