Nada se perde com Christian Petzold, tudo se transforma
“Se me deixares, tenho te matar”, diz Undine Wibeau (Paula Beer), de forma desesperada, nunca deixando cair a sua aparência calculada e resistente, frente ao homem que amou (ou até cuja paixão continua a nutrir) a momentos deste abandoná-la. Contudo, o aviso / ameaça foi em vão, o jovem galopante desaparece deixando a nossa protagonista num tormento.
Historiadora e guia de ocasião, Undine instrui a turistas, estrangeiros ou meros curiosos, sobre a natureza arquitetónica da cidade de Berlim, referindo-se às suas mudanças no percurso da História assim como a sua génese, um pântano segundo as suas palavras. Acompanhamos o didatismo pregado em cumplicidade com as maquetas, automaticamente materializando em geografias reais. Aliás, é nesta transposição – da representação pelo “real” – que somos guiados aos propósitos deste “Undine”, o novo filme de Christian Petzold (um dos nomes maiores do cinema alemão contemporâneo), que após um “divórcio” com a sua musa Nina Hoss, navega por outras águas, ao encontro de novos marinheiros (Franz Rogowski) e de novas ondinas (Beer).
Depois de “Transit” (2018), a dupla serve de apoio a esta extração em tom fílmico (e fabulista), do corpo (a sua fisicalidade) a uma ideia, a uma imagem e a um mito, a fonte mineira deste romance hiperbólico, como o leitor pôde constatar na ameaça deixada no primeiro parágrafo do texto. Como todos os amantes, ou aspirante a estes, existe uma permanente sensação de pioneiros no comum dos territórios (“Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“, ouvido, citado e traduzido em o “Portrait de la jeune fille en feu”, de Céline Sciamma, essa perdição de amores), um mundo criado, idealizado e sustentado até à sua rutura, o tal “armagedão” que leva qualquer um à sua extrema loucura. E para Undine, esse amor não morreu, nem sequer foi morto, transferiu (eis novamente a transposição) para outro corpo, outra face, outro … digamos … olhar.
O que Petzold nos ensinou, em muito do seu cinema, é que nada morre, tudo é reciclado e incorporado em novas vivências, basta olhar para trás (como a personagem Undine exerce nos braços do seu novo amante, vendo o “antecessor” passar por ela), à dinastia de Nina Hoss – do inquietante “Yella” (2007) ao arrepiante “Phoenix” (2014) – para verificarmos a concretização de uma segunda oportunidade, de uma mudança e por vias disso, digamos, uma apropriação. Em “Undine”, passamos do amor murcho à mercê da sua dissipação para o colapso de um aquário (um “metafórico” cativeiro) e o nascer de um novo interesse. Assim, é reconstruída uma nova tragédia, com rasgos da sua mitologia, da sua fantasia disfarçada e ocultada na arquitetura berlinense e a liberdade proposta nas profundezas fluviais, um canto de sereia abafado pelo pântano que o seu ambiente transformou.
Undine torna-se Berlim, e Berlim torna-se Undine, uma cidade, um corpo, que não morre, simplesmente dá a vez a outro. Christian Petzold pode não ter aqui a essência bruta e já flexível da sua cooperação com Nina Hoss (saudades), mas sabemos que temos, não um desfecho, e sim, uma aurora. Um reinício do seu Cinema.
Não querendo banalizar um termo, por si só, tão banalizado, eis um belo filme.