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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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“Nada conheces sobre Hiroxima”

Hugo Gomes, 01.12.21

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A renúncia de Alain Resnais em um novo tratado de ocidentalização perante as imagens de horror culminou no nascimento do cinema moderno através do seu “Hiroshima Mon Amour” (1959), filme que viria conquistar os mais eternos amantes e alteraria o rumo de que as imagens poderiam naturalmente prosseguir. Hoje, não só tido como o celebrado homem por detrás da poesia tecida em tempo real com o mencionado filme, Resnais foi também um realizador plenamente interessado na linguagem progressiva e radicalmente moderna, afastando o dispositivo cinematográfico do mero contador de história, e sim, do abalo de consciências e sensibilidades (isto até se vergar pela hibridez do teatro). 

Com "Hiroshima'' o caso poderá ser resumido pelo primeiro ponto, e não fiquemos por aí. Já experiente em documentários curtos, o realizador subjugou-se a falatórios pela construção das imagens extraídas do Holocausto, uma experiência ética de como as representar e apresentar ao mundo, resposta a Adorno e as suas preocupações de primeiro ego - “depois de Auschwitz, como fazer poesia”. O filme em questão foi “Nuit et brouillard” (1956), e a partir daí, tendo em conta o resultado, Resnais obteve um outro financiamento, novamente direcionado para o lado documental. 

Desta feita, partindo para o Japão, mais concretamente para a cidade-fénix Hiroxima, recolheu, quer dos arquivos (os horrores imediatos ao “incidente” nuclear), quer do ‘agora’ (o aproveitamento do desastre como fonte turística e pedagógica, e a vida citadina pós-bomba). Com esta coletânea, o sentimento geral foi o de criar uma réplica a “Nuit et brouillard”, o que incomodou Resnais, que por entre o captado comboio turístico que convida “estranhos e estrangeiros” a passear pelas ruínas dos horrores, cedeu à sua epifania. A exploração da miséria, e sobretudo uma abordagem de ocidentalização às dores dos outros, mais tarde para serem exibidas em festivais com clara receção de aplausos e elogios vários. Desta forma, Alain Resnais não quis entregar ao Mundo mais um exercício de distância, e através disso fintou os seus próprios fundos. Contacta a escritora Marguerite Duras para conceber um guião ficcional, e contrata atores profissionais para encenar essas suas dúvidas no grande ecrã – Emmanuelle Riva e Eiji Okada

O resultado pode ser resumido nos seus primeiros 20 minutos; dois corpos distintos, suados que acariciam, proclamando gestualmente juras de amor, mas por entre o calor dos amantes, que convém sublinhar ela, atriz francesa, ele, arquiteto japonês, despoleta um diálogo de contradições. Enquanto ela, de maneira ocidentalmente arrogante esquematiza os seus conhecimentos pela tragédia e pela cidade com um enorme absolutismo, ele impede-a de persistir nessa presunção - “Nada conheces sobre Hiroxima” – isto, intercalado por imagens documentais e encenadas dos horrores e do pós-horrores, do mundo sarado que deseja esquecer, ou melhor, esconder. O mundo nunca mais foi o mesmo depois de Hiroxima, o “evento” como o filme, o inaugural ensaio do cinema moderno, do cinema consciente e do cinema de proximidades e distanciamentos. 

Como é possível fazer poesia depois de “Hiroshima Mon Amour”?