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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na boleia da paternidade, a sensibilidade faz o espectador ...

Hugo Gomes, 06.03.25

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Mantenho a citação de Jacques Rancière no peito — “O Cinema é a arte do sensível” — e o crítico, como bom crítico que deve ser, é devoto dessa mesma sensibilidade. Ao contrário do que se crê, ou do que se vende enquanto ideia absoluta, a crítica de cinema não é a prescrição de uma verdade. O mercado, no entanto, apropriou-se dessa noção para corresponder aos instintos restritos de um público que se mantém na lógica algorítmica do consumo. Há, sim, uma verdade na crítica, mas essa verdade não exclui o próprio crítico, que entre o subjetivo e o objetivo, ostenta uma sensibilidade a ser captada, e utilizar esse resíduos como combustão do seu “julgamento”. 

Estes falsos aforismos servem de pretexto para justificar a minha entrega a “Le Roman de Jim”, da dupla fraterna Larrieu [Jean-Marie & Arnaud], em teoria, um ensaio simultaneamente naturalista e anti-naturalista, mas foi outra coisa que me conquistou. A sua história em quatro tempos, protagonizada por Karim Leklou, um ator frequentemente descrito como um "urso" no próprio filme, apresenta-nos uma narrativa que segue o seu percurso através de uma cronologia fatal e dos afetos que nela se enraízam. Ou, para dizê-lo de forma mais terna, um retrato da paternidade de quem, no sentido biológico, não o é. 

Leklou, premiado com um César e distinguido no LEFFEST por esta interpretação, dá corpo a um homem desamparado, recém-saído do cárcere, que reencontra uma antiga amante (Laetitia Dosch) — uma mulher abandonada por um homem casado sem antes de a ter deixado com uma "semente". Diante desta criança, o protagonista não se limita a apadrinhá-la; assume-a plenamente como pai, proclamando o seu papel com a convicção de quem desafia as convenções. Assim nasce e cresce Jim (Eol Personne), feliz no seio de uma família construída com base na ternura, até ao momento em que o pai biológico (Bertrand Belin, ator e compositor de “Tralala”, anterior obra dos Larrieu), outrora ausente, surge à porta. Enlutado pela perda da sua família “original”, decide agora “reclamar” uma nova.

A partir daqui, o filme desenha um confronto entre o tradicionalismo e o progressismo, sugerindo a paternidade partilhada como solução. Mas, num registo à partida semelhante ao de Philippe Garrel pós-”Le Cœur fantôme” (1996), os Larrieu fintam essa bravura de costumes para dar-nos um sermão, só que ao contrário dele não temos aqui as cantigas de velho rabugento que “Le Sel des larmes” (2020) ou “L'Amant d'un jour” (2017) perfilham. Ao invés disso temos o confronto deste pai suplente em re-atingir o seu posto por direito. O tempo, aqui, assume um caráter traiçoeiro, e curiosamente demarcado pelo fascínio fotográfico do próprio personagem de Leklou (cujo negativo nos chega em forma de introspecção interventiva e invasiva), do analogico até ao à poeira digital, com albuns invisíveis de milhares fotogramas como separador temporal. Mas ao contrário do aceleramento da narrativa, o protagonista dificilmente envelhece, exceto na maturidade em que o seu arco exige. Ele surge quase deslocado do tom naturalista que o filme abraça, mas é com ele que nos guiamos — bravos, ao seu lado — através da sua luta, da sua determinação e, por fim, da sua desistência, o qual não podemos condenar.

Nesta reconquista impossível do direito paternal, mesmo que a biologia lhe seja adversa, há uma noção de “fabrico social” que Koreeda, de forma lúdica, desafiou num Japão preso a um tradicionalismo enraizado. Os Larrieu, por sua vez, não atropelam nada estabelecido, apenas constroem uma situação que ressoa em nós, os tais espectadores sensíveis. Sentimos as dores de Leklou como nossas, e cada epifania nas três sequências dignas de desfecho reverbera no interior que voluntariamente entregamos como nossa sequestrada sensibilidade.

Por isso, agarro-me à definição de Rancière e faço dela a minha desculpa. Que filme delicadíssimo sobre arrependimentos, sobre a morosidade do tempo a corroer-nos por dentro (mesmo que o corpo permaneça intacto), mas, acima de tudo, um hino ao Pai. A essa figura que, em criança, encaramos como herói e, em adultos, carregamos como um complexo ou ferida por sarar.