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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Música no coração ...

Hugo Gomes, 05.09.24

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O “doppelgangerismo” gravita por órbitas obsessivas, alucinogénicas e um pouco autodestrutivas, um efeito nascido do nosso desejo de sermos um outro do que nós próprios e o mesmo o medo de perder as nossas feições nesse processo (o de nunca largamos totalmente o que havíamos estabelecido). Isso também retira-nos a ideia de individualidade, enchendo-nos de histórias de sósias sem relacionamento algum com laços sanguíneos ou árvores genealógicas, esse temor constante de sermos únicos, especiais, cuja “quase cópia” conduz-nos a um embuste aludido. Na literatura muitas dessas intrigas resultaram em tratados formidáveis sobre a alma humana, desde Saramago a Dostoievski, que curiosamente geraram as suas adaptações cinematográficas, com Denis Villeneuve e Richard Ayoade enquanto conductors dessas histórias. 

Agora, com João Tordo no papel, Artur Serra Araújo, realizador discreto por estas bandas (“A Moral Conjugal”) assume essa intenção de simbolizar a síndrome do impostor, mal de cada artista ou de quem anseia criar arte. O livro no seu original formato intitula-se “O Ano Sabático”, em tela é “Dulcineia”, a homenagem da homenagem, a melodia que Hugo (António Parra), através de um ano de ausência da sua predestinação, sabático como gosta de considerar, compôs secretamente no seu refúgio em Marrocos. É a sua obsessão, como fora a de D. Quixote pela restauração da cavalaria nesse clássico magnus opus da literatura, o nome estava no pensamento do velho como uma donzela em apuros, um amor inatingível, o seu objetivo na sua demanda contra monstros-moinhos ou homens-marionetas. 

Para Hugo, Dulcineia era a sua nova e única razão de viver, portanto, a batizou-a em consideração à homónima jovem empregada da sua irmã (uma Alba Baptista como erro de casting), mas até isso foi-lhe retirado no preciso momento em que, após o seu regresso a Portugal, esbarra-se com essa mesma melodia, produzida por via de um pianista na berra, Stockmann. O choque em o descobrir, o atira para um abismo existencial, fazendo duvidar da originalidade e a criatividade, meros acasos ou coincidências que podem se originar da convergência, segundo começa a acreditar. Mas o mais insólito de que essa música momentânea, é o facto de Stockmann ser cópia de Hugo, e que por sua vez é a vida que ambicionava ter, vivida por um outro alguém. 

Em texto, e sabendo das inúmeras alterações tidas na conversão para cinema, “Dulcineia” se apresenta como um fascinante exercício dessas questões entrelaçadas. Em prática não é bem assim. Rodado antes e após a pandemia, condicionante e muito as suas ideias base, Artur Serra Araújo construiu uma história estática, de planos trabalhados e nunca, por bem dele e de todos nós enquanto espectadores, cedidos ao alarve televisivo de que as nossas produções, sobretudo as mais narrativas, fraquejam-se em render. Nesse campo visual, estético e logístico, “Dulcineia” opera nos seus conformes, nada a apontar, só que em comparação com o que deseja contar, desequilibra-se no seu agravado passivismo para com o material. As interpretações como o conflito ou as sugestões de profundidade, quer com a intriga ou com os protagonistas, são deformes, murchas e sem um pingo emocional. 

É um trago amargo. O caminho está lá, no vislumbre de todos, o porquê de nunca ter prosseguido em sua direção, é um mistério. Por fim, é um filme que ambiciona ser outro filme, caindo na sua mais trapaceira armadilha, a de se deixar vender pela “síndrome do impostor”.