Música no coração ...
O “doppelgangerismo” gravita por órbitas obsessivas, alucinogénicas e um pouco autodestrutivas, um efeito nascido do nosso desejo de sermos um outro do que nós próprios e o mesmo o medo de perder as nossas feições nesse processo (o de nunca largamos totalmente o que havíamos estabelecido). Isso também retira-nos a ideia de individualidade, enchendo-nos de histórias de sósias sem relacionamento algum com laços sanguíneos ou árvores genealógicas, esse temor constante de sermos únicos, especiais, cuja “quase cópia” conduz-nos a um embuste aludido. Na literatura muitas dessas intrigas resultaram em tratados formidáveis sobre a alma humana, desde Saramago a Dostoievski, que curiosamente geraram as suas adaptações cinematográficas, com Denis Villeneuve e Richard Ayoade enquanto conductors dessas histórias.
Agora, com João Tordo no papel, Artur Serra Araújo, realizador discreto por estas bandas (“A Moral Conjugal”) assume essa intenção de simbolizar a síndrome do impostor, mal de cada artista ou de quem anseia criar arte. O livro no seu original formato intitula-se “O Ano Sabático”, em tela é “Dulcineia”, a homenagem da homenagem, a melodia que Hugo (António Parra), através de um ano de ausência da sua predestinação, sabático como gosta de considerar, compôs secretamente no seu refúgio em Marrocos. É a sua obsessão, como fora a de D. Quixote pela restauração da cavalaria nesse clássico magnus opus da literatura, o nome estava no pensamento do velho como uma donzela em apuros, um amor inatingível, o seu objetivo na sua demanda contra monstros-moinhos ou homens-marionetas.
Para Hugo, Dulcineia era a sua nova e única razão de viver, portanto, a batizou-a em consideração à homónima jovem empregada da sua irmã (uma Alba Baptista como erro de casting), mas até isso foi-lhe retirado no preciso momento em que, após o seu regresso a Portugal, esbarra-se com essa mesma melodia, produzida por via de um pianista na berra, Stockmann. O choque em o descobrir, o atira para um abismo existencial, fazendo duvidar da originalidade e a criatividade, meros acasos ou coincidências que podem se originar da convergência, segundo começa a acreditar. Mas o mais insólito de que essa música momentânea, é o facto de Stockmann ser cópia de Hugo, e que por sua vez é a vida que ambicionava ter, vivida por um outro alguém.
Em texto, e sabendo das inúmeras alterações tidas na conversão para cinema, “Dulcineia” se apresenta como um fascinante exercício dessas questões entrelaçadas. Em prática não é bem assim. Rodado antes e após a pandemia, condicionante e muito as suas ideias base, Artur Serra Araújo construiu uma história estática, de planos trabalhados e nunca, por bem dele e de todos nós enquanto espectadores, cedidos ao alarve televisivo de que as nossas produções, sobretudo as mais narrativas, fraquejam-se em render. Nesse campo visual, estético e logístico, “Dulcineia” opera nos seus conformes, nada a apontar, só que em comparação com o que deseja contar, desequilibra-se no seu agravado passivismo para com o material. As interpretações como o conflito ou as sugestões de profundidade, quer com a intriga ou com os protagonistas, são deformes, murchas e sem um pingo emocional.
É um trago amargo. O caminho está lá, no vislumbre de todos, o porquê de nunca ter prosseguido em sua direção, é um mistério. Por fim, é um filme que ambiciona ser outro filme, caindo na sua mais trapaceira armadilha, a de se deixar vender pela “síndrome do impostor”.