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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Movimentos noturnos ou como a culpa abala moralidades

Hugo Gomes, 15.07.14

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Na teoria, os três ativistas-protagonistas são os heróis intervenientes que atuam na marginalidade que o mundo atual precisa urgentemente. No entanto, em "Night Moves" (não confundir com a homónima obra de Arthur Penn) é difícil criar empatia com este mesmo trio. A sexta longa-metragem da realizadora Kelly Reichardt remete-nos para um grupo de ativistas radicais com planos para fazer explodir uma barragem que, segundo estes, é o primeiro passo para impedir a rápida escassez e destruição do oceano. Porém, por mais ativistas que sejam, estes esquecem-se de que são, acima de tudo, meros humanos (e talvez inexperientes no ramo), emocionalmente fragilizados e conscientemente instáveis.

O que começa como um thriller perspicaz, delineado sob alguns contornos hitchcockianos, depressa se converte numa melodia de culpa, um eco consequencial dos atos ambíguos. As mensagens ecológicas (existe uma curiosa sequência de uma corça prenha defunta cujo seu "rebento" ainda vivo transmite uma metáfora de tal natureza ao espectador - o nascimento de novas gerações num "mundo" destruído e insustentável) são assim invocadas como macguffins deste grupo de personagens, condenados desde o início a prevalecer numa sociedade ditada pela relevância e influência dos media e da opinião pública, que por sua vez dita os contornos da consciência individual. E é nisso que "Night Moves" funciona, não como um ensaio cinematográfico sob o mote de Al Gore, mas como um reflexo das causas, dos atos e da intervenção não como um bem individual, mas como um dispositivo para a autodestruição do mesmo. Sob sinais, é fácil identificar a evolução das personagens, meros "tubos de ensaio" num biótopo conduzido em tais elementos.

Quanto à estrutura, dentro do cinema de Reichardt, "Night Moves" é capaz de surpreender pela forma como conduz a narrativa, desafiando a sua própria marca, onde o percurso, em “lume brando”, é mais importante do que o destino. Neste caso, o destino é-nos dado de forma reveladora, mas é evidente que os caminhos trilhados são mais entusiasmantes do que a dita chegada. E é sobre esse caminho que a realizadora, argumentista e também editora, implanta uma sonoplastia aguçada em equilíbrio com uma fotografia misteriosa, tudo isto funcionando em cumplicidade com um poder de sugestão que a cineasta valoriza em vez do tom mais explícito dos cânones do thriller.

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A juntar aos elementos técnicos, narrativos e morais (neste aspeto a discussão será imensa), "Night Moves" valoriza-se igualmente pelo empenho dos três protagonistas, com Jesse Eisenberg a abandonar o seu reconhecível maneirismo e deixar-se ser conduzido numa melancolia denunciadora, que, sob pequenos pormenores, desafia o espectador a decifrar a sua psique e uma dualidade transgressiva. Quanto a Dakota Fanning, a pequena e outrora aclamada "prodígio", parece a passos largos de abandonar a imagem de "menina talento", agora já formada, a apostar em papéis mais maduros e negros. Por fim, Peter Sarsgaard, num desempenho arrepiantemente envolvente.

Assim, Kelly Reichardt assenta num filme complexo, mais do que estruturalmente aparenta. Um exemplar frio e por vezes calculista sobre a negra natureza humana, servido de uma qualidade técnica, referências cinematográficas de requinte e a conduta dos três protagonistas em construir personagens desagradáveis mas sob desempenhos sólidos. Tendo em conta a essência de "Night Moves", o Homem é capaz de tudo, até mesmo de tecer a sua própria moralidade.