Moretti 8 ½
De “não-filmes” a “filmes incompletos”, é dessa forma que o universo de Nanni Moretti é povoado, e em “Il sol dell'avvenire” conta-se um falso retorno ao seu estado original, à comédia sardónica e ao cunho altamente pessoal (por vezes roçando o autobiográfico ou simplesmente o alternativamente biográfico). É desses fantasmas que o autor exorciza numa espécie de ritual criativo, é novamente a ausência, seja de que forma seja, ou que manifeste a apresentar o seu rascunho, ora entendido como pauta para o filme a seguir.
Entre “Caro Diario” (1993) e “Aprile” (1998) - a ruptura com o seu alter-ego Michele Apicella e o momento de se assumir imerso na sua própria ficção - existia um hipotético musical de um pasteleiro trotskista dos anos 50, uma ideia, uma fixação e por vezes uma produção ficcionalizada na qual Moretti regressa quando convém, servindo de cela existencial para o tema indexado. Em “Mia Madre” (2015), era a mantra de um filme desgovernado por uma realizadora em crise familiar e um ator-vedeta convencido em sequestrar a produção, enquanto o 'verdadeiro' filme estava a ser construído fora dos bastidores dessa ficção dentro da ficção; era a despedida de uma figura maternal, o restante era apenas um escape, ora dançante, ora conduzido em vívidas alusões. Estes filmes (ou supostamente) enriquecem o campo do vazio/ausência que o cinema de Moretti traz como garantido punhado. Basta revisitar o “e se” em “La stanza del figlio” (2001), o mais óbvio dessa tese do vácuo e como lidar-lo, onde o filme, metaforicamente, segue uma narrativa inexistente, realidade como quiserem chamar, uma materialização dessa mesma ausência, o luto disfarçado e acorrentado nas asas libertadoras da imaginação.
Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação. Descrever esta obra como um “feel good movie”, “gringamente” falando, está para além do ser redutor, é antes ir à vértebra ferida de Moretti, porque até o convicto cede, e a cedência faz parte desse crescimento (ou amadurecimento, vá lá). Em “Il sol dell'avvenire”, é a transição de um Moretti hirto a um Moretti vencido, mas não derrotado, apenas revigorado.
Veremos o que espera no pós deste “Fellini 8 ½” concretizado e de menores proporções? Mas assim o quis, talvez para fazer jus à sua natureza morettiana. Quer dizer, não se deixem enganar, temos Moretti sendo Moretti, surdamente erudito como profano, de retiradas iradas de Estaline às causas comunistas (dentro e fora do ficcionado filme dentro do filme, até porque o “filme é seu” como deixa expresso), à sua manifestação / revolta pela violência cinematográfica, gratuita ou necessária (a questão torna-se unilateral porque a visão de Moretti triunfa sobre tudo o resto, refletir, autoritariamente “sugere”, ao invés de terminar o filme alheio), e a Netflix - o gag certeiro como “coelho retirado da cartola do mágico” … 190 países (!), na supremacia de um “cinema” de formatos e algoritmos. “Se eles dominarem, o Cinema morre”, expressou Rodrigo Teixeira (o produtor de “The Witch”, “Frances Ha” e “Call Me By Your Name”), e sem dúvida alguma acredito que o Moretti partilha da mesma crença.