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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Misericórdia para o filme que se recusa a ser moralizado

Hugo Gomes, 27.03.25

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Ainda a recordar os seus tempos áureos com desconhecidos num lago — ponto de encontro para aquilo que se tornaria a marca distintiva de Alain Guiraudie, o seu homoerotismo bestial —, encontramos traços desse mesmo espírito em "Miséricorde". Comecemos assim: não vemos aqui o que distingue a estética dita queer ou o conteúdo quase utópico do cinema LGBT, a universalidade sexual em Guiraudie está na sua fealdade, na forma como os corpos se dispõem ao prazer sem se tornarem produtos de prazer. Por outras palavras, não há "deuses gregos", mas sim decadência física, despojamento e, sobretudo, a banalidade dos corpos — das banhas, da pelagem ou da disformidade anti-padrão. "Miséricorde" resgata essa pureza guiraudiana, mas quem espera um filme nos moldes de "L'inconnu du lac" ou do seu antecessor "Rester Vertical", engana-se. Não é um filme gay à luz desses ensaios, aqui, a sugestão é a arma principal, e a perversão entra pela porta da frente.

As relações estreitam-se após a morte de um dos habitantes da aldeia de Saint-Martial - um pai de família, padeiro da localidade, cujo funeral recebe uma visita (in)esperada: um amigo de infância do filho do defunto, Jérémie (Félix Kysyl), vindo da cidade de Toulouse. Hospedado na casa da viúva para prestar devida homenagem, este homem, de vida desfeita, deslumbra-se com fotografias do falecido em fato de banho, sempre sob a vigilância quase-maternal da mulher solitária que um dia o teve nos braços (Catherine Frot). Contudo, o estranho da aldeia dinamita todas as relações envolventes: desde um vizinho deslumbrado e encavacado com o seu retorno, recordando momentos ao sabor de pastis, ao filho do morto, dominado por um ciúme descontrolado, passando ainda pelo padre da paróquia (Jacques Develay), envolvido em amores sacrílegos. Tudo culmina numa belíssima sequência de confissão, quase um decalque de "I Confess", de Hitchcock.

I Confess (Alfred Hitchcock, 1953) / Miséricorde (2024)

"Miséricorde" não suplica perdão pelos seus pecados, mas, no fundo, atravessa um campo minado apenas para chegar a uma outra mina: toda aquela comunidade converte-se num ensaio sobre a humanidade, o seu humanismo bacoco e as suas perversidades, enquanto combustão para testar o espectador. Já Agustina Bessa-Luís dizia, na sua dicotomia celestial: "O mal é prazer e todo o prazer é satírico." A austeridade pode, portanto, ser vista como a benfeitora do trilho para outras fronteiras e recompensas divinas, mas "Miséricorde", apesar do título, faz-se de parvo perante essas moralidades e revela a sua verdadeira natureza num diálogo crucial entre o pároco lascivo e Jérémie, engolido pela culpa do seu ato, um determinismo trágico alicerçado num niilismo existencial absoluto manifestado como epifania precoce, dando lugar a um absurdismo corrosivo a esses estandartes de "bom moço samaritano".

De que adianta um crime e a martirologia que o acompanha se o genocídio é a palavra de ordem no mundo? Um padre que desafia as doutrinas do seu Deus, questionando a sua onipresença e onisciência. Herege? Talvez. Mas o filme brinca com estas questões, tal como Camus e o seu “O Estrangeiro” brincavam com a consciência da moralidade e a sua resposta fracassada perante os padrões socialmente aceites. Alain Guiraudie faz uma reflexão em forma de filme — um misto bressoniano e pialatiano —, o seu "Sous le soleil de Satan", mas com desejos perturbadores pelos corpos de outrem, e numa ofensiva aos concreto muros desses valores sagrados. Não basta ter misericórdia por esta obra; é preciso coragem para encontrar nela, não respostas para o mundo, mas direções para pensar sobre ele. O que é a moral?