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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Mil e uma coincidências em tempos de solidão

Hugo Gomes, 07.03.21

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Com “felizes horas” passadas (não sendo uma menção ao acaso, visto que é o regresso do realizador na alçada da produção de Satoshi Takada de “Happy Hour: Hora Feliz”, em 2015), Ryûsuke Hamaguchi converte-se numa Sheherazade dos contos de solidão e repreensão na sua roda da sorte e de fantasia, trazendo à “vida” três das suas sete histórias (o realizador garantiu-nos que iremos conhecer as restantes quatro em projetos futuros). A trindade de historietas, todas elas protagonizadas por mulheres (vítimas do humor trocista do destino, são motivadas pelas escolhas, muitas delas disfarçadas por meras coincidências). Assim, Hamaguchi saído da sua experiência “comercial” (o caracterizado “shōgyō eiga” [termo nipónico para cinema comercial japonês, porém das convencionalidades do cinema pipoca norte-americano] “Asako I & II”) remexe na sensibilidade destas figuras solitárias e repreendidas.

No primeiro capítulo – intitulado de “Magic (or Something Less Assuring”)” – somos levados a um regresso ao passado indiciado num pertinente acaso. Nunca se deve voltar ao lugar onde fomos felizes, ou aquele que o qual, nunca percebemos, até então, que alguma vez o fomos. Seria este o conselho dado a Meiko (Kotone Furukawa), que descobre por via de uma conversa casual com a sua amiga Tsugumi (Hyunri), de que esta tem encontros românticos com o seu datado ex (sem esta desconhecer a natureza e historial daquele homem). Depois do diálogo, um desejo ardente renasce nela e de modo instintivo confronta o seu antigo amante. Do conjunto, este é o conto mais sádico e perverso, interiorizando uma certa repreensão sexual que desafia os códigos romanescos do afeto. Possivelmente, tal por efeito daqueles zooms desengonçados que aludem um certo autor sul-coreano, Hamaguchi parece interessado em incutir um cinema habitual em Hong Sang Soo … e não somente em aspetos formais … um moralismo “rohmeriano” que se adequa a questões quânticas e dimensionais. Uma espécie de gato de Schrödinger no seu mundanismo.

Já o segundo tomo – “Door Wide Open” – continuamos nas demandas sexualmente repreensivas. Desta vez uma mulher – Nao (Katsuki Mori) – servida de isco numa armadilha sexual, uma vingança planeada para comprometer um consagrado romancista e professor, transforma-se num conto erotizado quanto à sua verbalização, discutindo a fantasia em territórios, novamente, “rohmerianos”. Em seu jeito, funciona como um humorístico castigo divino, mas atinge, nas suas devidas alturas um vínculo espiritual para com a capacidade do criador – “as minhas palavras têm ressonância na experiência do leitor” – ouve-se a certa altura. E porque não assumi-lo como um canalizador de todo este percurso a três. Contudo, é na chegada à terceira curta-metragem que deparamos com a grande galinha de ouro nesta “roda afortunada”.

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Once Again” (sendo este o título atribuído) leva-nos a um futuro ali ao lado com uma particular distopia, um vírus informático com a capacidade de alterar para todo o sempre a nossa sociedade, expondo os nossos segredos e questionando as nossas próprias relações (curiosamente este segmento foi rodado em plena pandemia). Aí, Moka (Fusako Urabe), uma mulher na casa dos trinta, encontra uma mulher (Aoba Kawai) que lhe faz lembrar um antigo amor de liceu. O suposto reencontro é mais uma partida desse mesmo destino e Hamaguchi inverte essa crueldade em prol de um ensaio sensível sobre os afetos, memórias e sentimentos revividos, colocando-nos numa bandeja de artificialidade quanto a estas mesmas definições. Ou seja, nada é puro, e por sua vez existe pureza.

Confusos? Sim. Porque todas as definições, daquilo que nos garantem como genuínos sentimentos ou relações, somos evidenciados como construções dedicadas, por vezes desabadas, e resumidamente erguidas com igual paixão. Hamaguchi sabe o quanto especial é este episódio, esta revisitação, e por isso, as duas [e em grande parte do tempo únicas no seu mundo] protagonistas são atrizes “resgatadas” da sua primeira longa-metragem (“Passion”, 2008). O reencontro é nesta feita um ciclo emaranhado na sua própria criatividade.

No final há aquele zoom mal-amparado à lá Hong Sang Soo (outra vez!), mas já não interessa. Perdoamos Hamaguchi desse esse mesmo desleixo, a jornada que nos trouxe nesses perfeitos desconhecidos e imperfeitos conhecidos é uma das brilhantes histórias contadas no seio de uma pandemia. “Once Again”, por si, é uma jóia rara.

Pode alguém que vive uma vida aborrecida escrever um romance?