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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Mestres Japoneses Desconhecidos II": ainda há muito para (re)descobrir no cinema nipónico

Hugo Gomes, 03.11.22

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Um ano depois da arriscada proposta Mestres Japoneses Desconhecidos, do qual a distribuidora e produtora “The Stone and the Plot” nos apresentava uma trilogia nipônica fora dos cânones e das referências comuns do cinéfilo ocidental, eis que seguem os seus frutos. A sequela, esperada, traz-nos até nós mais três obras de rara acessão e de quase total desconhecimento para esse mesmo público. 

O resultado é uma década - a de 60 - nas reformulações da nova vaga japonesa, no qual três diferentes realizadores exibiram os seus dotes transgressores (cada uma à sua maneira) e diferentes óticas quanto ao seu país em constante mudança. Uma proposta mais arrojada, demonstrando a coragem ainda existente em curadorias e processos de distribuição cinematográfica no nosso país. Senhoras e senhores, “Mestres Japoneses Desconhecidos II” …

 

Glass-Hearted Johnny (Koreyoshi Kurahara, 1962)

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Transformando a região de Hokkaido num pseudo-western lamacento com vislumbres a neorrealismos italianos (“La Strada” de Fellini tem sido a sua indicada influência, e as similaridades não são poucas), “Glass-Hearted Johnny” (“Johnny Coração de Vidro”) é uma encruzilhada de três seres desamparados, a de um talentoso, mas caótico apostador de corridas, um “moço-de-recados” de um bordel e uma jovem provinciana obcecada pela fantasia do “Joe”, música materializada numa premonição que nunca se realizará. 

Peripécias e mal-entendidos nesta produção dos estúdios Nikkatsu, Koreyoshi Kurahara (realizador do popular “Antartica”, que originou “Eight Below” da Disney) executa uma obra romantizada e de uma fervença melancólica que se vai apoderando como uma canção (aliás, que tal como o comparado “La Strada” será uma melodia de ausência), as ruas desta cidadela suja, abandonada por muitos e desejada por poucos, representa essa solidão partilhável das personagens, cujas angulares trazem-nos as memórias os duelos ao pôr-do-sol desse género tão americano, só que aqui, ninguém ousa em reivindicar as suas posses. 

E é no trio de atores que “Johnny Coração de Vidro” sobressai, desde a “clownescaIzumi Ashikawa, o soturno Daizaburo Hirata e o “muso” de Seijun Suzuki, Jō Shishido, naquele que foi um dos seus primeiros papéis. 

 

A Woman’s Life (Yasuzō Masumura, 1962)

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Dos filmes menos conhecidos de Yasuzo Masumura, realizador por detrás de cultos como “Blind Beast” (1969) e “Irezumi” (1966), ambos circundando a transfiguração do corpo feminino, “A Woman’s Life” (“A Vida de uma Mulher”) já ostentava “sementizinhas” dessas suas posteriores obras, não de uma forma visceral e corporal, porém, colocando a mulher como peça moldável às invariáveis do tempo. 

Baseado no conto de Kaoru Morimoto, uma encomenda imperialista que resultou numa crónica às transmutações da nação, dos seus sonhos de expansão até à pesada derrota bélica da Segunda Guerra Mundial, no centro, uma mulher órfã, Kei (Machiko Kyō, a estrela de muito do cinema de Mizoguchi, e a protagonista de “The Face of Another” de Teshigahara, e de “Rashomon” de Kurosawa) é acolhida por uma família próspera. Encarregada pela matriarca de ser o “leme” desse seio, a nossa “heroína” converte-se, mais do que uma mártir, numa sacrificada, sem emancipação, apenas objetiva com as ambições de outros. 

O tempo atravessa, como a do Japão (as elipses são executadas através de manchetes de jornais), até que, em conjunto com o seu país, isolam-se no conforto das “memórias”, das “velhas glórias” e nos “palácios em cacos”. Ilusões e fatalismos, as aspirações que dão lugar a esquecimentos. Eis um filme encantado com o seu desencantamento, cruel como enganosamente doce, é uma música triste cantarolada em mera impotência. A vida, essa, simbolicamente trocista. Um intenso fado.

 

The Girl I Abandoned (Kirio Urayama, 1969)

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Dos três, o mais vincado quanto aos reconhecíveis contornos da “nova vaga japonesa”, trata-se da terceira longa-metragem de Urayama (que trabalhou como assistente de realização nos primeiros filmes de Shohei Imamura), realizador referido como um dos marginalizados pelo estúdio Nikkatsu

Uma obra tricolor (as cores, iniciando pelos filtros esverdeados-esmeralda e os amarelados que identificam os flashback, mais tarde, as cores apoderam-se dos devaneios e onirismo presenteado no epílogo) - inspirado no homónimo romance do muito cristão Shûsaku Endô (o mesmo autor de “Silêncio”, sobre jesuítas portugueses no Japão, adaptado cinematográfico por Martin Scorsese e João Mário Grilo) - que avança por novas burguesias nipónicas, contrastando com as classes mais desafortunadas, e pela reindustrialização pós-Guerra. Um país irreconhecível, cada vez mais divorciado do tradicionalismo, este convertido em bazares e típicos adornos de sala (há uma máscara que se explicita como um atípico zeitgeist). “The Girl I Abandoned” (“A Mulher que Abandonei”) é toda essa crónica enxugada num romance de juventudes inconscientes (e desiludidas, invocando as manifestações estudantis de 68), rompido abruptamente, a espinha dorsal dramática tracejada com um retrato de transmutação. 

Um filme perturbado por receios apocalípticos, com a derrota bélica relembrada enquanto premonitória assombração (neste aspecto as cores vivas apoderam-se). Por razões pouco esclarecidas, o filme, concretizado em ‘68, apenas conseguiu ser lançado no ano seguinte, sem a devida recepção. Ainda hoje é uma obra (tal como o seu cineasta) pouco conhecida e pouco vista, dentro e fora do Japão