Male Gaze? Female Gaze? Não, non-gaze!
Perguntam-nos, hipoteticamente, o que é o erotismo? Como se valida o erotismo no cinema? Estas questões, verdadeiros dilemas que nos colocamos, nascem de um debate cada vez mais aceso sobre os “gazes”, seja o masculino, seja o feminino, ou até na subversão daquilo que encaramos como certos os códigos do erotismo cinematográfico. Contudo, existe algo crucial, talvez transversal à identidade dos olhares: o tempo. Que tempo dedicamos à arte de erotizar? Que tempo oferecemos ao “objeto-perspetiva” desse subgénero?
Isto para dizer, de forma clara e simples, que “Babygirl” não é um filme erótico, porque não existe esse tempo dedicado, principalmente ao erotismo de Nicole Kidman, atualmente com 57 anos. Mas a questão não se centra na atriz ou na sua idade (apesar desse fator influenciar o “objeto-perspetiva”), e sim no acompanhamento da sua performance por parte de quem está do outro lado da câmara: a realizadora neerlandesa Halina Reijn, que, em tempos, submeteu Carice Van Houten a preparados semelhantes (vide “Instinct”, 2019).
É evidente que “Babygirl” marca a grande entrada de Reijn no “cinema dos grandes”, usando Nicole Kidman como o seu cavalo de Troia. Kidman interpreta uma CEO de uma empresa hi-tech, com pernas esticadas pela inteligência artificial — uma figura de poder insatisfeita sexualmente. Nem mesmo o seu caliente marido, um dramaturgo interpretado por Antonio Banderas (convenientemente confortável na sua sexualidade), faz algo para inverter a frigidez desse desejo. A premissa é simples e, até certo ponto, pertinente: uma mulher experiente no Mundo, abraçada ao poder instituído e capitalista que nos rói a alma, rende-se à sedução masoquista de um estagiário (Harris Dickinson, “Triangle of Sadness”). Constrói-se aqui uma inversão de papéis: ela, poderosa; ele, um mero funcionário à experiência. Mas já lá vamos às problemáticas dessa cantiga.
Desde o primeiro momento, percebemos as fissuras deste matrimónio que não se cumpre na cama. A personagem de Nicole Kidman salta da mesma ainda quente das relações com o marido para “afogar-se” nas certezas da pornografia, encerrando assim o assunto. É aqui que a câmara de Reijn parece coincidir com as perturbações sexualmente amorosas da personagem, mas esquece-se do restante. O filme, de handcam profundamente desautorizado, filma sexo aos trambolhões, edita e re-edita sequência por sequência, e nunca, mas nunca, olha de frente para Kidman. Ela é um sujeito distante, que não merece nem amor, nem um olhar lascivo da câmara. Nunca a vemos a expor-se devidamente, nunca — e, tendo em conta a sua idade, a procurar a sua sexualidade. Tudo é filmado como pornografia: daí a câmara tremida (os tripés desapareceram!?), frívola, sem tempo algum dedicado ao seu “objeto-perspetiva”. Será idadismo? Convenço-me de que sim, porque, no momento em que Dickinson retira a camisa e dança uma “private” para a realizadora — com Kidman como figurante na equação —, o filme perde tempo a contemplar os seus abdominais, as costas definidas, os bíceps em movimento. Ou seja, uma câmara que foge de Kidman e se aproxima do seu estagiário psicopata ... não é "female gaze" porque não existe um outro olhar para atriz, aliás apenas desprezo.
E aqui surge outro problema: a “cantiga de embalar” — neste caso, a do Poder entregue às mulheres, captando uma sororidade sem reflexão. Repito: ela — CEO, ele — estagiário. E, mesmo assim, o filme retrata o “fulano” com ares obsessivos e questões por resolver em terapia. Deste lado, pensamos: “Coitada dela, a ser manipulada por essa criatura nefasta chamada homem.” Pois bem, “Fifty Shades of Grey”, no seu lado mais negro (longe do glamour mercantilista que nos martirizaram), é a história de uma mulher manipulada por um homem. Aqui, é só a desculpa para torcermos por uma Kidman em posição de privilégio perante o seu “jovem agressor” (só de pensar que a atriz recusou o papel de Isabelle Huppert em “Elle” de Verhoeven, e esse é sim, um filme devidamente ácido com o Poder e persuasão da fantasia no feminino, para fazer pandã com outro clássico, “La pianiste” de Haneke).
Já perto do final, existe um discurso entre duas mulheres, a personagem de Kidman e a sua assistente em vias de promoção, com os seus toques de “todas juntas” para manterem os lugares no alto das hierarquias, é um exemplo dessa leitura enviesada. Em 1994, Michael Douglas foi “violado” (deixem-me rir desta parte) por Demi Moore, a sua patroa, em “Disclosure” (dirigido por Barry Levinson), e hoje ninguém prega a inocência da personagem de Douglas nesse filme obsoleto. Portanto, mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades. É óbvio, sim, que vivemos numa sociedade em mudança, e daí surge o revisionismo das obras cinematográficas. Talvez, enquanto espectadores cada vez mais pavlovianos, estejamos inclinados a assumir que filmes dirigidos por mulheres são automaticamente críticas ferozes ao patriarcado, mas, quando o tema é Poder, o sexo não é uma lavagem alternativa: esse mesmo corrompe, independentemente de quem o detenha (basta olhar para Margaret Thatcher — foi uma mulher de Poder, não é verdade?).
“Babygirl” apresenta-nos uma tremenda ingenuidade na sua mensagem. Convém não nos indignarmos tanto pela sua inconsequência ou acrotismo às relações de Poder, mas também não podemos ignorar um filme de uma tanga tão ambiciosa e, ao mesmo tempo, tão incompetente na sua ambição. Kidman merecia mais, obviamente, merecia o que Demi Moore teve em “The Substance”: uma realizadora que estivesse lá, na sua exposição. Não basta ser uma boa atriz; é preciso ter um aliado(a) do outro lado da câmara.
Porém, não posso deixar impune um filme que aspira ser progressista e desconstrutivo, mas que, estranhamente, trata a homossexualidade com uma condescendência peculiar, como se esta fosse um espectro de autismo ou algo do género. Ora bem, “Babygirl” é uma ‘coisa’ que não questiona o erotismo, porque não dedica tempo a essa via. Mesmo quando Banderas confronta o amante da sua mulher, as possibilidades de discussão sobre sexualidade, desejo e satisfação, que naturalmente poderiam emergir, não passam de breves notas de rodapé sem qualquer conformidade com um verdadeiro diálogo.
Ou seja, não há diálogo nem tese, o “objeto-perspetiva” é nulo; aliás, o tratamento é pura e simplesmente inexistente. O resultado? Um filme de um corpo em vão …