Macacotopia
Há um momento no filme em que duas personagens humanas interagem, os Ecos, como são apelidados pelos símios dominantes, eles argumentam (muito breve tendo em conta o contexto da ação) e tentam persuadir um ao outro sobre o seu papel naquele mundo. A mais jovem, interpretada por Freya Allan, ambiciona por uma revolta, uma contra-ofensiva humana para reconquistar o antigo direito antropocentrista, enquanto o mais velho, William H. Macy (há muito não visto por estes lados), remata em jeito derrotista: “o mundo agora é deles”.
Chegamos ao quarto “Planeta dos Macacos” deste reboot iniciado em 2011 e que atingiu um brilharete com a batuta de Matt Reeves nos seus dois últimos capítulo da trilogia (“Dawn of the Planet of the Apes” e “War of the Planet of the Apes”), porém, em termos de saga e das suas diferentes intersecções é o décimo filme baseado no livro de Pierre Boulle, e obviamente, imortalizado pela sua adaptação em 1968, naquela icónica imagem e twist final com Charlton Heston grunhindo e socando o chão de raiva - “You Maniacs! You blew it up! Ah, damn you! God damn you all to hell!”.
Contudo, voltemos a este “Kingdom of the Planet of the Apes”, decorrido gerações à frente do desfecho do “War” (2017), aqui, apresentando um mundo pós-apocalíptico, onde a natureza reavê o seu perdido território, cruzando betão, esses rasto de uma civilização há muito perdida com o imparável selvagem e nela, utopia trazida por uma proto-sociedade de símios sapientes. Damos de caras com o nosso protagonista, um destemido chimpanzé com interesses na arte da falcoaria, tradição do seu clã, Noa (com Owen Teague em motion-capture), que após a tragédia que abateu ao seu vilarejo, prossegue num jornada ao encontro do desconhecido e de reinos de discórdias entre primatas. É macaco contra macaco a entrar em vigor neste futuro, e aí estão ditados os ingredientes que farão aproximar estes “quatro-mãos” aos humanos que tanto inferiorizam enquanto criaturas imundas.
É a continuação de um fascínio perverso que nós, humanos, nunca escondemos desde os escritos do Livro das Revelações, a fantasia quanto à nossa destruição, da nossa ausência e contraditoriamente a continuação da nossa essência mesmo com a inexistência humana. Neste caso os primatas assimilam aos sonhos molhados do antropocentrismo, à conquista, subjugação, genocidio e tiranização dos seus. Tal como os anteriores filmes são estas criaturas em CGI que ostentam alegorias à nossa espécie, são eles um reflexo distorcido e animalesco do nosso mundo, um espelho de Perseus que reflete a face hedionda e condenada de Medusa, a gorgon do olho de pedra, fazendo-a encarar o que sempre negara ver, a sua danação. Dito desta forma, soa que este “Planet of the Apes” é um complexo retrato político-social, mas só que não. Evidencia o seu lugar de blockbuster, direto e simplista na sua matéria filosófica, recebendo os resquícios da seiva oleosa dos filmes de Matt Reeves, mas dele um fruto menos sumarento, mesmo que confortavelmente digno da sua cadeira de entretenimento.
“Kingdom of the Planet of the Apes” é assinado por Wes Ball (de um outra saga, mais distópica que utópica, “Maze Runner”), menos gracioso e criativo que Reeve, apesar de ambos comportarem-se como tarefeiros à altura da expectativa de Hollywood. Contudo, é uma franquia que tem-se revelado milagres quanto à maquinaria e centrifugação que o sistema industrial hollywoodesco consegue captar. Não tão sapiens como “Dawn” e “War”, e longe de ser um australopithecus de filme.