Living Room
Robert Zemeckis nunca desiste em colocar a tecnologia e os seus experimentos ao serviço da narrativa, mesmo que tais façanhas lhe tragam um dissabor financeiro, mesmo assim o sistema ainda se aposta nele nesta corrida entre estúdios e o alcance das bilheteiras. Comecemos então com o seu novo projeto - “Here” - com base na excepcional graphic novel do artista Richard McGuire (editado em Portugal pela Cavalo de Ferro), obra que posiciona-se num só espaço, um canto que atravessa a pré-história até a uma América ante-colonizada, virando uma sala de estar, a “living room” que o inglês tão bem se adequa.
A narrativa parece estagnar nesses saltos formidáveis entre tempos e prossegue na história de uma família, indicando três gerações, e como já devem ter entendido se mantém rígidos na sua assoalhada. Zemeckis acaba por adaptar fielmente esse estilo dos “quadradinhos”, concretizando um plano fixo prolongado no qual a decora por via de uma estética de conversão e transposição tecnológica, há um artifício notável e notado que desliza ocasionalmente para o seu quê de artificial. Dessa feita são os dinossauros e a sua iminente extinção a abrir o pano do espectáculo, seguindo pelos nativos norte-americanos numa espécie de romance intemporal, dando a vez a uma Guerra Civil para dar um aroma específico de tragédia familiar e o final do século XIX com a aviação enquanto sinal de progresso.
“O futuro é o único caminho a seguir”, declara o aspirante a aviador perante a sua esposa desconsolada com a moradia que irão adquirir em conjunto, o filme, por outro lado passeia por esse futuro, contornando, recuando, e incentivando, diminuindo a cadência temporal nas proximidades da nossa contemporaneidade. A narrativa estilhaçada, com pontas geracionais a dialogar com o próximo, indicam a criatividade visual de Zemeckis em apresentar o seu storytelling consoante as regras estabelecidas do tal “plano fixo”, funcionando num teatro de exercícios e virtuosismos. Depois, Zemeckis não deixaria de ser Zemeckis se não existisse esse “bicho carpinteiro” com a tecnologia e as suas possibilidades, Tom Hanks e Robin Wright, o “casal maravilha” de “Forrest Gump” (1994), são as cobaias desse de-aging e aging, da adolescência à velhice, ao serviço de uma fidelidade com os maneirismos e a carne, mesmo que ela nos apresenta em jeito de ”bonecos de cera”.
É o problema destas tecnologias, e o IA prestes a integrar o cardápio dos técnicos, o de nunca transmitir uma verdadeira textura, carnalidade e dimensão, a quem chame facilitismo, neste caso é pura carolice. Porém, não cede ao espalhafato digital porque Zemeckis é um artesão dramático de uma já considerada “velha guarda” em Hollywood, conseguido captar em cada quadro uma carga emocional, como também uma tese submersa ao longo deste joint - somos nada neste universo, indo contra a própria regência da produção. Momentos zeitgeist ali e acolá: George Floyd e o COVID a serem invocados com uma subtileza de génio em historietas anexas, e uma rigidez formal neste metamorfoseado “plano fixo” a revelar o detalhe da sua arquitetura dramatúrgica.
Ficamos felizes com o exercício e a sua ginástica, só que o truque é revelado naquele final consolidador, um travelling mais que spielbergueano a desmascarar a sua sobriedade formal. Robert Zemeckis, o eterno comparsa de Spielberg, cita como sempre citou uma incidência quase capriana, aqui, por exemplo, Tom Hanks a ser uma espécie de George Bailey sem anjos da guarda para o interceder.
Vá … confessemos, este é um dos melhores Zemeckis em muito tempo, mesmo com a sua rigidez e performance tecnológica.