"Leonora in the Morning Light": a cinebiografia enquanto espanta-espíritos
Leonora Carrington (1917–2011), vulto proeminente do movimento surrealista no início do século XX, parte para o México ao lado do escritor Renato Leduc, numa tentativa de fugir à Grande Guerra que assolava a Europa. À chegada ao Novo Mundo, Leonora é acolhida por velhas amizades e por admiradores ‘frescos’, mas é com a selva que o seu fascínio verdadeiramente se manifesta: os sons libertados pela vivência animalesca guiam-na para os cantos profundos da sua memória.
Dita como possuidora do dom de falar com animais (seres que lhe surgem por via de alusões e metáforas materializadas), encontra neles encanto e refúgio da realidade. Esses momentos preciosos captados em “Leonora in the Morning Light” levam-nos ao deslumbre, ao virtuosismo técnico e por outro lado à beleza quase plastificada nessa união da direção artística e da fotografia. É nesses instantes que a luz matinal assume o seu poder encantatório: o espectador sente-se aquecido por essa reluzente presença. Mas, como se diz nos encostos portugueses, trata-se de “sol de pouca dura”: breve, efémero, ou lá o que seja.
Este filme, assinado a quatro mãos (por Thor Klein e Lena Vurma, com base no bestseller de Elena Poniatowska), não faz jus à figura que retrata, cuja aura artística tantas vezes se comparou à de Frida Kahlo, a razão está num certo grau de academismo ou, talvez, num respeito excessivo pelas matrizes de um subgénero biográfico demasiado vulgarizado. Como se, na vida de outréns, o cinema encontrasse conforto em fórmulas e raramente o confronto. Ainda assim, não deixa de ser um filme com valor. Por meras pinceladas, reconhecem-se os seus méritos de produção, a destreza com que se orienta dentro das suas limitações, e o facto de não ser uma produção de altos voos hollywoodianos, ou o desempenho de Olivia Vinall enquanto Leonora, fazendo frente a um argumento serpenteante entre flashbacks atrás de flashbacks.
Queríamos acreditar numa revisão mais corajosa da cinebiografia, até porque a inspiração viria do próprio trabalho ou da óptica artística de Leonora, mas a tarefa soou mais pertinente para os seus autores, do que seguir as linhas-guias da produção. Há muito que “Gainsbourg (Vie Héroïque)”, de Joann Sfar, brincava, discretamente, com o ego do artista e a criação de falsas narrativas, já em “Leonora in the Morning Light”, ficamos vacinados contra tais devaneios.
Filme visualizado no âmbito do Festival Internacional de Guadalajara