Lavagante e champanhe ...

"O lavagante alimenta o safio “levando-lhe comida a todas as horas (…) a essa serpente estúpida de grandes sonos, vendo-a a engordar, engordar, até saber que a tem bloqueada, incapaz de sair do buraco porque o corpo cresceu de mais, enovelou-se, e não cabe na abertura por onde podia libertar-se. Nesse momento (…) o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo.”
Podíamos, nesta altura, estar a celebrar (ou, no mínimo, a constatar) o regresso de António-Pedro Vasconcelos [APV] aos braços de Paulo Branco, mas o destino prega das suas partidas de vez em quando, e “Km 224” tornou-se no ingrato ponto final da sua carreira. O que restou foi um argumento: a adaptação do homónimo livro (por sua vez também inacabado) de José Cardoso Pires, e, no sacrifício da obra, o deslizar de Mário Barroso (de diretor de fotografia para a cadeira de realizador). Difícil mesmo agora é imaginar “Lavagante” como o inimaginável epílogo de APV, até porque, nos últimos anos de carreira, este perdeu a apetência estética, resvalando para um formalismo de fácil digestão, por vezes a lamber o universo televisivo. Daí a questão interessante: como sobreviveria um realizador enredado nestes engodos populares num ambiente que se queria autoral? Requisitando essa via ou apenas o seu simulacro? Ora, mistérios do “e se”!
Entretanto, “Lavagante” permeia como uma transcrição certinha, mesmo quando o contexto político-social exigiria outras agressividades, tendo em conta o palco português atual e as tentativas de revisionismo dos ideais de Abril. Na procura de um cinema político, Barroso (“Milagre Segundo Salomé”, “Ordem Moral”) parece não ter a garra necessária para transgredir a forma e o adorno aparente, mas, convém sublinhar: o que está em causa é o livro de Cardoso Pires, crítico feroz do antigo regime e das réstias deixadas nas gerações sucessoras. Onde “Lavagante” encontra a sua inspiração é na forma quase sedutora como procura, em Júlia Palha, uma obsessão histórica (no cinema sob o cunho de Branco, a actriz tem servido essa pele como ninguém — veja-se, por exemplo, “Campo de Sangue” de João Mário Grilo), mais do que mera pin-up, uma mulher idealizada num projeto de país. A câmara ama a actriz: nela há uma valsa gradual de olhares, sorrisos e gestos, um namoro, uma fantasia, a romantização de um país paralelo.
A história de um médico enfeitiçado por esta jovem, culminando na prisão e posteriormente no exílio, é um conto cautelar, com moral enviesada, mas também uma culpa: o sacrifício de uma ideia de país, que só nos contornos adocicados do rosto de Palha o vemos miraculosamente representado, como pinturas rupestres. A sua personagem não é mais do que uma ninfeta, dito assim, parece objetificação vazia … ou talvez não, porque é na compostura, na desilusão trazida por essa prolongada canção de engate, que encontramos a defraudação: a renúncia de uma nacionalidade, de uma identidade, encorajada por esse canto de sereia. Poderíamos, sim, imaginar esta personagem de Júlia Palha pelos olhos de APV, só que, com Barroso, é isto que temos: sob um manto preto-e-branco, emoldurado e igualmente truque para falsear a reconstituição histórica, sempre longínqua, fora das possibilidades orçamentais do nosso cinema.
Com isto, esperamos, aguardando ansiosamente, por um cinema político não confinado a nichos ou a estéticas autorais, mas algo que fale às massas sobre o saudosismo patológico ou sobre estes tempos tenebrosos que nos ameaçam. Algo adaptável às vontades de cada um, igualmente raivoso, nada contido. Em tempos, à altura de “Parque Mayer”, APV declarou de peito aberto: o “único cinema político português é o meu”, nada mais distante da realidade. Ser político não é apenas reconstruir uma época, é desestabilizar uma estação. Nesse aspecto, APV era demasiado domesticado; Barroso, por outro lado, demasiado ilustrativo.