Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Lá para "Bostofrio", para além da memória

Hugo Gomes, 08.11.19

39143_58530_73040.webp

As figuras alinham-se perante o horizonte paisagístico da aldeia de Bostofrio. O céu recorta o relevo montanhoso despido de qualquer indício de Humanidade; as vozes vindas deste mesmo coletivo amontoam-se; um eco intruja-se nessa sonoridade até se desvanecer no tempo. Tempo esse que Paulo Carneiro, que até então tinha exercido o cargo de assistente de realização e a estreia a solo numa curta / making of de uma das suas colaborações com João Viana (“A Batalha de Tabatô”), vasculha por todo o território deste pequeno ponto no mapa transmontano.

O pretexto é simples: a procura de uma identidade de um dos desconhecidos da sua sina – o avô. Mas sob esse trabalho de campo, uma investigação por entre narrativas e mais que narrativas, existe a clara afirmação de um realizador emancipado, que aproveita o jogo deixado por muitos para implementar as suas próprias regras. Como já parece ser hábito, ou quase praxe dos formandos cinematográficos, o meio rural tem sido uma peregrinação bucólica e plebeia na sua imagética.

Paulo Carneiro através de um território comum provoca uma insurreição alicerçada no seu rigor técnico, isto enquanto joga-se pela exposição, quer a nível de “know-how“, quer a nível sentimental. Sem medo de desvendar a sua face sensível, assumindo-se como um “infiltrado” na ilusão do seu Cinema, o realizador e protagonista identifica-se como um “one-man-show“; o investigador como o caso de estudo, descortinando preconceitos e explorando o secretismo de uma comunidade propícia a tal.

Em Paulo Carneiro encontramos ares de António Reis e Margarida Cordeiro, previsivelmente as suas demandas pelas terras transmontanas e ao mesmo tempo pelo documentário intimista com rasgos para cometer as suas ilusões. Mas dentro dessas mesmas sugestões, que funcionam como uma aura que espreita e pressente e da exposição que o realizador não possui problemas de “exibir”, o filme encerra-se na sua própria dignidade, até porque Carneiro faz um Cinema seu, a ser partilhado por todos, mas sobretudo a ser abraçado e acarinhado pelo próprio.

Obviamente, encontramos aqui razões para sorrir perante a simplicidade do registo, e não devemos com isso menosprezar o gesto. Dentro do dito documentário luso, a sua contenção, o seu foco no tema e o sentimento, valorizam-no perante muitos desta mesma colheita. Como escreveu certa vez Jacques Rancière, e o qual não canso em citar: “o cinema é arte do sensível“. E há sensibilidade nos cantos remotos de Bostofrio.