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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Klára Tasovská remexe no arquivo de vida de Libuše: "Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona."

Hugo Gomes, 20.01.25

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Um clique aqui, um clique acolá — bilhões de fotos tiradas diariamente graças aos dispositivos tecnológicos de que hoje dispomos. Mas, para onde vão essas fotos? Para que servem? Que histórias têm para contar sobre quem as tirou? Através da galeria cinematográfica concebida por Klára Tasovská, refletimos sobre o nosso entorno, sobre as imperatividades estéticas das redes sociais e o nosso desapego ao físico. Se um cataclismo acontecesse já amanhã, que marcas teríamos para mostrar sobre a nossa contemporaneidade?

Em “I’m Not Everything I Want To Be”, a jornada da checa Libuše Jarcovjáková revela-se um achado—uma estória com História, um acontecimento. A sua vida pulsa nas suas fotografias: tem presença, tem ritmo, tem pessoas. Muito se pode dizer sobre os frutos de quase meio século de captação, mas acima das questões identitárias, sociais ou políticas, destaca-se o indivíduo que imprimiu a sua pegada. A sua existência está assinalada.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora sobre o filme, o arquivo, a potencialidade cinematográfica da fotografia e daquelas atualidades emolduradas. Como podemos tornar-nos vivos num mundo que cada vez mais se dissolve em pó eletrónico?

Gostaria de começar por falar sobre a génese deste projeto. Como surgiu a ideia para este filme e o que despertou o seu interesse na figura de—deixe-me ver—Libuše Jarcovjáková? Espero estar a pronunciar o nome corretamente. [risos]

[Risos] Então … sim, na verdade, a ideia surgiu da Televisão Checa. Eles queriam que fizesse um pequeno documentário televisivo sobre o sucesso da Libuše após a sua exposição em Arles, França, até porque ela foi subitamente reconhecida lá. Foi uma exposição enorme, e até foi mencionado no The Guardian, chamando-a a melhor exposição do ano—acho que foi em 2019. Então, foi há cerca de quatro anos que conheci a Libuše, e fiquei muito entusiasmada com a sua personalidade, ainda mais com o seu enorme arquivo e tudo o que ela representava.

Mas então como é que chegou à conclusão que o projeto ganharia “melhor porto” no Cinema do que na televisão?

Para mim, ela era a protagonista perfeita para explorar temas femininos, a história checa e a liberdade. Era algo muito especial para mim, e por isso decidi que este tinha de ser um documentário maior, ao invés de apenas um pequeno projeto para televisão

E de onde surgiu a abordagem? Esta viagem narrada somente pelas suas fotos …

Começámos a trabalhar neste projeto há uns quatro anos. Mas sabes, fiquei sempre a pensar: como é que se conta uma história que já aconteceu no passado? E foi aí que comecei a pensar em usar apenas as fotografias dela, o arquivo, os diários… todo esse material. Só que, claro, explicar esta ideia aos meus colegas e produtores não foi fácil.

Depois, veio a pandemia de COVID, e acabou por ser uma sorte para nós, porque todos ficámos em casa. Foi então que a Libuše começou, pela primeira vez, a digitalizar o seu arquivo do Japão. Para mim, isso foi tão entusiasmante, porque era uma parte tão pessoal do arquivo—refletia completamente quem ela era naquela altura. Ela era o Japão naquele momento. E foi aí que percebi que era mesmo possível construir toda a história dela só com esses materiais.

Por isso, para mim, era crucial fazer o filme através dos olhos dela, para que o público pudesse experimentar o mundo como a Libuše o via e vivia. Não acrescentei nada meu à história dela, nenhuma imagem ou algo assim—quis mesmo ser fiel à perspetiva dela. E foi assim que começámos a trabalhar no filme.

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Klára Tasovská e Libuše Jarcovjáková / Festival de Berlim 2024

A Libuše era como uma observadora inquieta, e ao longo do filme o seu trabalho reflete a sua busca por pertença e identidade. Acredita que a jornada dela é mais uma experiência universal ou algo profundamente pessoal? Com base no seu filme, qual é a sua opinião sobre isso?

Para mim, sim, absolutamente. Apresentámos o filme em muitos festivais em diferentes países, e as pessoas disseram que é uma história universal. A busca por nós próprios, pela identidade, é algo identificável—todos a experienciam à sua maneira.

Para mim, isso também era crucial porque não queria apenas fazer uma biografia. Queria criar algo mais universalista, algo que explorasse esses temas de uma forma que fosse próxima e inspiradora. É uma jornada que ressoa com tantas pessoas—este processo de se descobrirem.

Uma coisa que me deixou curioso foi o título. Li várias interpretações sobre ele, e a mais comum que ouvi é que reflete a insatisfação que vem com ser uma pessoa criativa.

Mas, com base no seu filme, a minha interpretação do título é um pouco diferente. Para mim, parece mais que o mundo, em si, não é um lugar perfeito para nos tornarmos totalmente aquilo que queremos ser. O mundo é adverso, está sempre a mudar. Por exemplo, na história da Libuše, sempre que ela acha que encontrou o seu caminho, o mundo muda, e tudo se altera. O mundo muda ao longo do seu filme, assim como ao longo da vida dela.

Sim, é verdade. Para mim, também foi importante porque li os diários dela, e ela escreveu durante toda a sua vida. Na verdade, encontrei o título nos diários dela, porque, sabes, ela escreveu isto cerca de doze vezes. Sempre que tomava uma grande decisão para mudar a sua vida, ou quando decidiu mudar-se para o estrangeiro, ela escrevia isto. Era como um mantra para ela.

Algumas pessoas perguntam-nos se isso não é demasiado negativo, mas para ela, era algo positivo. Era como: “Não sou tudo o que quero ser, então vamos encontrar outro caminho.

E também, a Libuše dizia muitas vezes que não é possível ser o que as pessoas querem que sejamos, porque quando chegamos aonde achamos que queríamos estar, provavelmente vamos querer ser outra pessoa. Portanto, é uma história sem fim. Para mim, foi o título perfeito para tudo isso, porque, sim, acho que é exatamente assim.

Como foi o processo de montagem deste filme, especialmente em relação às fotos? Acredito que a Libuše tenha uma vasta coleção de imagens, então, como selecionaram as especiais para contar esta narrativa?

Passámos dois anos na sala de edição, a trabalhar todos os dias, oito horas por dia. Começámos com poucas fotos e algumas anotações dos diários dela—nada mais. Foi necessário criar tudo do zero: encontrar todos os sons, compor a música, e todo o restante trabalho. Um dos grandes desafios foi o arquivo da Libuše, que é um pouco desorganizado ou, talvez, caótico. Sem muitas exposições realizadas, ela apenas digitalizou algumas das melhores fotos que fizeram parte dessas exibições, e tem, salvo erro, dois livros. Essas fotos foram o ponto de partida, mas o resto do arquivo precisou de ser explorado.

Todos os negativos estavam em casa e foi preciso mergulhar na pesquisa. O objetivo era encontrar todos os auto-retratos, porque a ideia era que ela estivesse presente—não apenas como figura central através da voz-off, mas também na sua presença física nas fotos. Procuraram-se também imagens com movimento, para dar uma sensação dinâmica às fotografias.

Foi um trabalho enorme, que envolveu digitalizar todo o material. Ainda assim, foi um processo fascinante, e o editor [Alexander Kashcheev], que também trabalhou no design de som, ajudou a criar tudo na sala de edição. Contar a história de forma cronológica foi uma decisão baseada na leitura dos diários. Dividir em dois capítulos facilitou bastante o processo, permitindo trabalhar por partes, começando pela primeira secção e selecionando fotos específicas para ela antes de avançar para a próxima.

O editor empenhou-se em tornar as fotos mais dinâmicas. Por exemplo, gosto muito de filmes como “Tarnation” (Jonathan Caouette, 2003), mas aqui pretendia que as imagens fossem apresentadas como uma sequência estática—foto após foto, sem outros elementos. Não queríamos isso. A intenção era tornar mais vividas estas fotografias. Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona.

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Existe uma possibilidade cinematográfica numa imagem estática?

Para mim, sim. Sabe, o cinema de Chris Marker é uma grande inspiração para , e “La Jetée” está entre os meus filmes favoritos. Durante o período na FAMU, fiz um pequeno filme que seguiu essa abordagem, o que ajudou a perceber que podia funcionar. É possível construir a história de alguém através de imagens, som e voz-off, e esse método tem algo de especial. Trabalhar com estas imagens é um processo incrivelmente criativo e envolvente.

Quando vi o seu filme, uma frase veio à minha mente. A frase é uma citação oriunda de um filme independente americano, que convém, não se destaca para lá disso [“Kodachrome”, Mark Raso, 2017] , mas temos uma personagem interpretada por Ed Harris que diz algo como: "Não é a foto que importa, mas o facto de a ter tirado: "As pessoas tiram mais fotografias agora do que nunca, bilhões delas, mas não há diapositivos, nem impressões. Apenas dados. Poeira eletrónica. Daqui a anos, quando nos estudarem, não haverá fotografias para encontrar, nenhum registo de quem fomos ou de como vivemos.”. 

No caso da Libuše, quando encontramos o seu arquivo, não encontramos apenas um registo de uma pessoa, como igualmente um registo de meio século de vida dela—o fim do domínio soviético, a queda do Muro de Berlim, por exemplo. Portanto, isto é mais um comentário do que uma questão. Mas vou perguntar na mesma: será importante para nós, enquanto indivíduos marcados na nossa sociedade, tirar fotos físicas, apenas para deixar uma marca da nossa presença neste mundo?

Sim, penso que isso é muito importante. Por exemplo, quando a Libuše tirou fotos naquele clube, sabes, um clube que já não existe [T-Club]. Era um clube gay, e a polícia secreta estava lá, e ninguém mais tem fotos desse clube. Ela é a única que as tem. Por isso, é algo muito especial e único. Ela estava lá, a capturar aquele período no clube.

Para mim, essa abordagem histórica também foi crucial. E acho que, sim, as pessoas... Ela também tirou fotos dela própria e do seu quotidiano. Mas, no fundo, acho que as coisas pessoais têm uma grande carga política. Porque, de algum modo, estão todas conectadas a isso.

Por isso, fiquei contente por ela ter conseguido capturar esse nível de profundidade nas suas fotos, pois isso ajudou a tornar o filme não só histórico, mas também único.

Nos próximos projetos, pensa continuar a trabalhar com imagens estáticas / fotografias? 

Não sei...

Sabes, neste momento estou a trabalhar em dois filmes de ficção, por isso estou a mudar-me para esse campo. Mas também adoro este tipo de trabalho, e temos algumas curtas feitas com o arquivo da Libuše. Uma delas é sobre a mãe dela e é um diálogo entre a Libuše e a mãe, abordando o envelhecimento. Portanto, isso também é algo interessante para nós. Mas não sei o que virá a seguir. O meu próximo filme provavelmente será de ficção, mas vamos ver. Adoro trabalhar com filmes de arquivo, embora seja um trabalho árduo. É difícil selecionar, editar e até rotular—por exemplo, qual foto pertence a qual época ou ano. Foi um processo complicado.

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Posso imaginar que tenha sido difícil. E hoje em dia, sobre o filme... acredita que o trabalho da Libuše—porque sei que The Guardian—e no final dos créditos, há uma nota a dizer que ela se tornou uma das maiores fotógrafas do nosso tempo. Mas achas que este filme vai ajudar as gerações mais jovens, ou um determinado tipo de geração, a conhecer o trabalho dela?

Sim, acho que sim, porque frequentemente viajamos pelo mundo para festivais, e pessoas de todas as gerações e nacionalidades nos dizem que, de alguma forma, é importante para elas. E também é engraçado, porque ela tem muito a ver com o filme. Ela tem muitos seguidores no Instagram, cerca de 10.000, e adora isso. Ela realmente gosta.

Além disso, de alguma forma, temos distribuição em cinco países, e alguns distribuidores estão interessados em fazer exposições do trabalho da Libuše. Ela também teve a sua primeira exposição retrospetiva em Praga, na Galeria Nacional, o que foi uma grande conquista. Agora, ela tem este reconhecimento na Europa e também nos EUA. Ela está muito feliz com isso.

Sim, está a funcionar de alguma forma. E as pessoas dizem que é inspirador para elas, especialmente as gerações mais jovens. Elas disseram-nos que este filme de amadurecimento é inspirador. Mesmo que a Libuše tenha vivido essa experiência há 40 anos, para as pessoas, continua a ser algo inspirador, mesmo hoje em dia. Por isso, estou muito feliz com isso.