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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Kira Muratova: uma cineasta de três corações a (re)descobrir

Hugo Gomes, 23.08.24

transferir.jpegThe Long Farewell (1971)

Dois filmes de Kira Muratova chegam às salas em cópias restauradas, um lembrete de uma distribuição que resiste ao imperativo daquela dominância americana e dos entretenimentos imediatos, e que, de uma forma ou outra desafiam a cinefilia destas bandas. “Brief Encounters” (1967) e “The Long Farewell” (1971), as primeiras obras a solo da realizadora, e aí, cada um por motivos diferentes, os impasses para a sua proliferação artística. Tendo sido “proibida” filmar por anos e após anos, ordens das diretivas do regime soviético da altura (“Getting to Know the Big Wide World”, em 1980, marcou o fim desse “castigo”), e cuja vinda da perestroika e a consagração de “The Asthenic Syndrome” (1989, vencedor do Urso de Prata de Berlim), “libertaram” essas mesmas obras, dando ao mundo uma cineasta sem igual. 

Mas apesar destes anos todos, a questão permanece: quem é Kira Muratova? Uma mulher em conflito, nem que seja pela sua inconsciência ou o (in)fortúnio da sua existência. Nascida em 1934, na região de Soroca, hoje Moldávia, Kira Korotkova (tendo adoptado apelido Muratova durante o breve enlace com o seu co-realizador Oleksandr Muratov), formou-se em cinema no Instituto Gerasimov de Cinematografia, em Moscovo, antes de se radicar em Odessa, local onde produziu a maior parte da sua obra e que viveu até o seu último suspiro, em 2018. Ou seja, moldava de raíz, russa de mente e ucraniana de coração (nacionalidade que adquiriu após a independência), três partes de uma geografia próxima e igualmente distante, hoje, como é evidente, em conflito, um reflexo, ora involuntário, de uma conturbação interior, que iria marcar o seu estilo e estética, da narração ao visual. 

Desde os primeiros passos na realização, em 1961, Muratova revelou-se numa presença incómoda para o regime soviético, recusando-se a ceder às rígidas “normas” do realismo socialista, pontuando por narrativas erráticas, fragmentadas como um caleidoscópio emocional, o uso atípico do som, e a criação de personagens grotescas e desoladas, num delinear de um retrato socialmente corrompido e na decadência moral, sufocada pela estagnação brejneviana. Constantemente acusada de um niilismo quase misantrópico, Muratova manteve-se, mesmo após o abrandamento da censura, como exploradora dos abismos da condição humana e da sua “simbiose” para com a ideologia político-social em voga. Existia nela uma rebeldia, uma vontade de romper cânones de pensamento e proferir uma estética do absurdo e igualmente atenta às correntes artísticas que lhe atravessavam.

 

“Brief Encounters” (“Breve Encontros”, 1967) 

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A província serve de palco - aliás, palavra adequada visto que os flashbacks que servem de essência a esta narrativa encostam-se nessa dimensão algo teatral … mas já lá vamos - nesta sua primeira longa-metragem emancipada, onde já se anunciava o seu estilo com ecos da Nouvelle Vague francesa. Embora cronologicamente situado duas décadas antes, o filme foi mantido na escuridão até ao tempos da reconstrução (perestroika), sendo revelado ao mundo apenas pouco antes de “The Asthenic Syndrome”. 

É um triângulo amoroso entre Valentina (interpretada pela própria Muratova), uma funcionária regional em Odessa (“Caros camaradas …” desta forma somos apresentados a ela, por via da sua devoção partidária-ideológica), o seu marido Maksim (Vladimir Vysotsky, poeta e cantautor russo), e a jovem Nadia (Nina Ruslanova), uma empregada doméstica, que, sem o saberem, partilham um passado amoroso com o mesmo homem. A fragmentação destas relações é simbolicamente espelhada em objetos como pratos quebrados e uma guitarra com cordas partidas, exaltando a irreparabilidade do que se perdeu. A estrutura não linear do filme, tecida por esses flashbacks, os únicos onde Maksim se manifesta corporalmente, invocam o desejo aliado ao adultério e por consequência à condição feminina, que previsivelmente levaram à censura da obra. 

 

“The Long Farewell” (“O Longo Adeus”, 1971)

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Na sua segunda obra a solo, Muratova centra-se na dolorosa tensão entre uma mãe dominadora (Zinaida Sharko) e o filho (Oleg Vladimirsky) que dela se afasta, exprimindo um desejo de viver com o pai. Pedido esse, que fora interceptado pela própria progenitora.

Esteticamente mais elaborado que o anterior (tem um tom felliniesco, principalmente no seu retrato com burguesias alienadas), este é um filme mais concentrado nos não-ditos do que as palavras proferidas pelas personagens. Existe uma tensão previsível desde o ínicio, e essa “tirania” maternal conduz o filme para algumas imagens-alegóricas, seja essa dissipação para com um regime controlador ou o exodus ideológico de uma “Mãe Rússia” na sua decadência. Conforme a interpretação, é na sua abordagem vanguardista que Muratova julgou ter sido a sua condenação à censura - a subserviência a visuais e narrativas impostas pelo ocidente. 

Sendo assim, aquele final, a de uma mãe a provar a um mundo (mais concretamente uma figurativa plateia) que a ridiculariza, ter ainda a digna hipótese de ostentar o seu status, em contradição para com um filho embaraçado e defensor de outras vias. Tal pode-se traduzir nessa rebeldia que a realizadora bem entende - a história de duas “Rússias”, por via de uma geração que acredita, em oposição às anteriores, em outras soluções para além da conservação do regime e de um sonho utópico. 

Aliás, falando em utopias e virtudes comunistas que só em terreno onírico existem, Muratova é uma forte e ácida crítica a essas mesmas fantasias. Estas duas obras, uma mais ostensiva que a outra, pavoneiam essa mesma ofensiva. Uma realizadora num conflito interno que deixa transparecer numa linguagem, que só o Cinema conhece como ninguém.