Kira Muratova: uma cineasta de três corações a (re)descobrir
The Long Farewell (1971)
Dois filmes de Kira Muratova chegam às salas em cópias restauradas, um lembrete de uma distribuição que resiste ao imperativo daquela dominância americana e dos entretenimentos imediatos, e que, de uma forma ou outra desafiam a cinefilia destas bandas. “Brief Encounters” (1967) e “The Long Farewell” (1971), as primeiras obras a solo da realizadora, e aí, cada um por motivos diferentes, os impasses para a sua proliferação artística. Tendo sido “proibida” filmar por anos e após anos, ordens das diretivas do regime soviético da altura (“Getting to Know the Big Wide World”, em 1980, marcou o fim desse “castigo”), e cuja vinda da perestroika e a consagração de “The Asthenic Syndrome” (1989, vencedor do Urso de Prata de Berlim), “libertaram” essas mesmas obras, dando ao mundo uma cineasta sem igual.
Mas apesar destes anos todos, a questão permanece: quem é Kira Muratova? Uma mulher em conflito, nem que seja pela sua inconsciência ou o (in)fortúnio da sua existência. Nascida em 1934, na região de Soroca, hoje Moldávia, Kira Korotkova (tendo adoptado apelido Muratova durante o breve enlace com o seu co-realizador Oleksandr Muratov), formou-se em cinema no Instituto Gerasimov de Cinematografia, em Moscovo, antes de se radicar em Odessa, local onde produziu a maior parte da sua obra e que viveu até o seu último suspiro, em 2018. Ou seja, moldava de raíz, russa de mente e ucraniana de coração (nacionalidade que adquiriu após a independência), três partes de uma geografia próxima e igualmente distante, hoje, como é evidente, em conflito, um reflexo, ora involuntário, de uma conturbação interior, que iria marcar o seu estilo e estética, da narração ao visual.
Desde os primeiros passos na realização, em 1961, Muratova revelou-se numa presença incómoda para o regime soviético, recusando-se a ceder às rígidas “normas” do realismo socialista, pontuando por narrativas erráticas, fragmentadas como um caleidoscópio emocional, o uso atípico do som, e a criação de personagens grotescas e desoladas, num delinear de um retrato socialmente corrompido e na decadência moral, sufocada pela estagnação brejneviana. Constantemente acusada de um niilismo quase misantrópico, Muratova manteve-se, mesmo após o abrandamento da censura, como exploradora dos abismos da condição humana e da sua “simbiose” para com a ideologia político-social em voga. Existia nela uma rebeldia, uma vontade de romper cânones de pensamento e proferir uma estética do absurdo e igualmente atenta às correntes artísticas que lhe atravessavam.
“Brief Encounters” (“Breve Encontros”, 1967)
A província serve de palco - aliás, palavra adequada visto que os flashbacks que servem de essência a esta narrativa encostam-se nessa dimensão algo teatral … mas já lá vamos - nesta sua primeira longa-metragem emancipada, onde já se anunciava o seu estilo com ecos da Nouvelle Vague francesa. Embora cronologicamente situado duas décadas antes, o filme foi mantido na escuridão até ao tempos da reconstrução (perestroika), sendo revelado ao mundo apenas pouco antes de “The Asthenic Syndrome”.
É um triângulo amoroso entre Valentina (interpretada pela própria Muratova), uma funcionária regional em Odessa (“Caros camaradas …” desta forma somos apresentados a ela, por via da sua devoção partidária-ideológica), o seu marido Maksim (Vladimir Vysotsky, poeta e cantautor russo), e a jovem Nadia (Nina Ruslanova), uma empregada doméstica, que, sem o saberem, partilham um passado amoroso com o mesmo homem. A fragmentação destas relações é simbolicamente espelhada em objetos como pratos quebrados e uma guitarra com cordas partidas, exaltando a irreparabilidade do que se perdeu. A estrutura não linear do filme, tecida por esses flashbacks, os únicos onde Maksim se manifesta corporalmente, invocam o desejo aliado ao adultério e por consequência à condição feminina, que previsivelmente levaram à censura da obra.
“The Long Farewell” (“O Longo Adeus”, 1971)
Na sua segunda obra a solo, Muratova centra-se na dolorosa tensão entre uma mãe dominadora (Zinaida Sharko) e o filho (Oleg Vladimirsky) que dela se afasta, exprimindo um desejo de viver com o pai. Pedido esse, que fora interceptado pela própria progenitora.
Esteticamente mais elaborado que o anterior (tem um tom felliniesco, principalmente no seu retrato com burguesias alienadas), este é um filme mais concentrado nos não-ditos do que as palavras proferidas pelas personagens. Existe uma tensão previsível desde o ínicio, e essa “tirania” maternal conduz o filme para algumas imagens-alegóricas, seja essa dissipação para com um regime controlador ou o exodus ideológico de uma “Mãe Rússia” na sua decadência. Conforme a interpretação, é na sua abordagem vanguardista que Muratova julgou ter sido a sua condenação à censura - a subserviência a visuais e narrativas impostas pelo ocidente.
Sendo assim, aquele final, a de uma mãe a provar a um mundo (mais concretamente uma figurativa plateia) que a ridiculariza, ter ainda a digna hipótese de ostentar o seu status, em contradição para com um filho embaraçado e defensor de outras vias. Tal pode-se traduzir nessa rebeldia que a realizadora bem entende - a história de duas “Rússias”, por via de uma geração que acredita, em oposição às anteriores, em outras soluções para além da conservação do regime e de um sonho utópico.
Aliás, falando em utopias e virtudes comunistas que só em terreno onírico existem, Muratova é uma forte e ácida crítica a essas mesmas fantasias. Estas duas obras, uma mais ostensiva que a outra, pavoneiam essa mesma ofensiva. Uma realizadora num conflito interno que deixa transparecer numa linguagem, que só o Cinema conhece como ninguém.