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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Julie é "A Pior Pessoa do Mundo"! Convencem-nos o contrário.

Hugo Gomes, 11.02.22

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Julie recortada em 12 capítulos, uma dúzia de partes que completam aquela que é proclamada “A Pior Pessoa do Mundo”. Mas quem é esta antagónica figura que anseia captar para ela o título absolutista? 

Julie não comete nenhuma atrocidade, a sua existência, porém, dentro das exigências da nossa sociedade moderna (ou pós-moderna, como bem entender), fazem dela uma personagem descentrada das tendências cinematográficas como também da aceitação social. Ela, já com os seus 30 anos (“com a cara que merece” segundo os ditos populares e o filme de Miguel Gomes), mulher branca proveniente da Europa do Norte, ou seja, um privilegiado “primeiro mundo” enquanto protagonista, que decide, pelos motivos existenciais, descartar a carreira académica e limitar a uma vida “humilde” (aspas para sublinhar a ambiguidade do termo) sempre com os seus desejos e impulsos como prioridade, longe das convenções maternais e da imperatividade de constituir família, quebrar relações amorosas no seu auge para que, mais uma vez, assuma a sua fantasia e vontades a motes. Todos estes elementos a tornam numa personagem facilmente reconhecível e egoísta, mas Joachim Trier, em completa consciência do fim da sua trilogia de Oslo (“Reprise”, “Oslo, 31. august”), não vende o filme ao tamanho egoísmo ou sequer à hipocrisia moral. “The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. 

É a sociedade que nos vende a ideia de romance platónico, monogamia, conservadorismo, maternidade ou instinto familiar como última estância (nesse sentido desconfiam das pessoas que apelidam esta obra de “comédia romântica”). Trier através desse manifesto, e com graça de uma atriz (Renate Reinsve) capaz de traçar empatias numa personagem que no papel (novamente colaboração do realizador com o argumentista Eskil Vogt) seria incapaz de tal, consegue criar um filme feminista sem o usos ostensivo do panfletarismo e militantismo, e por outro lado faz um retrato da nossa existência enquanto ser comunitário e social. Conformismos para alguns, uma maldição para outros.