Impondo-se contra a 'surdez' do Cinema: uma conversa com Eva Libertad sobre "Sorda"

Sorda (2025)
Ángela e Héctor são aquilo a que no cinema se chama “romance idealizado” - ela, surda; ele, ouvinte - mantêm uma relação de divergências, como também de fortes uniões, e a decisão de expandir a família seria, em qualquer outro relato, o esperado desfecho narrativo de “e viveram felizes para sempre”. Só que não. O nascimento da filha lança Ángela numa crise existencial: a criança ouve, e a ligação previamente projectada entre mãe e filha fica ameaçada por esse pormenor crucial.
Vindo de Berlim, “Sorda” nasceu de uma curta-metragem homónima de Eva Libertad, cineasta espanhola que, com a irmã e actriz Miriam Garlo, igualmente surda, acompanha a história deste “casal-maravilha”, bracejando num “mar de rosas” em busca dos seus espinhos, e como essas pontas decretam as ênfases dramáticas e sensoriais da sua história. O Cinematograficamente Falando… conversou com a realizadora sobre a obra, a intenção de pontapear estereótipos e as imagens idealizadas nas quais muito do cinema persistiu até se tornarem marca registada, fazendo de “Sorda” uma espécie de anti-”CODA” … e nesse ponto, requere a grande tela como encontro da sua forma.
Gostaria de começar pela génese do projecto. Pelo que entendi antes desta longa-metragem já existia um curta sob o título, “Sorda”. Como foi parar ao formato longo?
Sim, em 2021 realizámos um curta-metragem que nasceu de uma situação muito pessoal. A minha irmã, Miriam Garlo, a protagonista do filme, estava a pensar em ser mãe, e conversávamos muito sobre isso. Ela partilhava os seus medos, expectativas, dúvidas, sobretudo sobre como seria viver a maternidade sendo surda num mundo maioritariamente ouvinte. A certa altura pedi-lhe que escrevesse esses medos, e dias depois recebi uma lista que me impactou profundamente. Percebi que, mesmo sendo irmã de uma pessoa surda, nunca tinha refletido tão a fundo sobre essa experiência. Dessa lista nasceu o guião da curta.
Depois da rodagem, ficaram duas vontades: por um lado, a de continuar a trabalhar com a Miriam (já a tinha dirigido em teatro, mas no cinema foi a primeira vez), e descobrir o quão poderosa era a sua relação com a câmara. Por outro, a minha própria vontade, como guionista e realizadora, de aprofundar aquela personagem e aquele contexto: uma mulher surda, com um companheiro ouvinte, às vésperas de ter uma filha. No curta, a criança nunca chega, só existe a antecipação, e queria explorar o que aconteceria depois: o impacto do nascimento na relação do casal e o vínculo de Ángela com a filha.
Para escrever a longa, tive que me distanciar da experiência pessoal da Miriam, até porque ela acabou por decidir não ser mãe. Entrei então numa fase de documentação: entrevistei várias mães surdas que partilharam comigo as suas vivências durante a gravidez, o parto e a criação dos filhos. A partir desses testemunhos construí o guião da longa-metragem.
Uma coisa curiosa no seu filme é essa espera pelo nascimento da criança. A expectativa de ser ou não ser surda dita o estado de espírito da personagem de Miriam. Quando Ángela descobre que a filha não é surda, há uma frustração que marca o segundo ato. Achei isso muito interessante, porque muitos filmes que vi sobre surdez, sobretudo em Hollywood, tendem a apresentar as pessoas surdas como figuras sempre pacíficas e harmoniosas para com a sua condição e o seu redor. No seu caso, vemos alguém com medos, frustrações e até revolta perante a sociedade. O filme é também uma resposta a essa imagem veiculada por outros media (e cinemas)?
Tinha desde sempre a ideia de Ángela ser uma mulher com caráter, imperfeita. Como espectadora, gosto de ver personagens contraditórias, difíceis, especialmente quando se trata de mulheres. Durante muito tempo, os papéis femininos foram limitados, pouco complexos. É por isso que gosto de anti-heroínas: mulheres que erram, que podem ser antipáticas, e que por vezes não as compreendemos. Não queria que o facto de ser surda a transformasse numa figura exemplar. A Ángela não é “representante” de todas as mulheres surdas, é uma personagem particular, com os seus próprios medos e fragilidades.

Eva Libertad
Pois, porque existe uma tendência em muito cinema de transformar personagens de certa formas ligadas à diversidade e representação social — sejam pessoas com algum tipo de deficiência, minorias, etc. — em símbolos exemplares. Penso que essa persistência acaba por reforçar estereótipos.
Concordo totalmente!
Portanto, posso garantir que foi algo que apreciei no seu filme: o anti-estereótipo. Porque conseguimos compreender Ángela, aquela sua frustração, imperfeição, até raiva. Penso também no que dizia: certos traços, como por exemplo, a arrogância, mais facilmente aceitamos em personagens masculinos do que femininos. Gostava que falasse mais sobre a construção da personagem da Miriam.
Pois isso também me intrigou durante o processo. Quando estava a escrever o guião e a trabalhar em laboratórios de desenvolvimento, alguns consultores diziam-me: “Ángela cai mal”. Pensava: ótimo, não há problema. Outros diziam: “Héctor é demasiado perfeito”. E perguntava-me: “o que está a acontecer aqui?”
O meu objetivo era precisamente criar um homem com inteligência emocional, disponível, capaz de cuidar dela. Porque conheço homens assim e acho que quase não aparecem no cinema. Então, quando me diziam que Ángela não era simpática ou que Héctor era demasiado bom, percebi como existe um julgamento desigual: se uma mulher não é perfeita, “cai mal”; se um homem é sensível e cuidador, é visto como “irrealista”.
Decidi manter essa escolha, e agora, nos debates após as exibições, o tema volta a surgir. Há homens que me dizem que Héctor é um exemplo e gostariam de ser como ele; outros acham-no “bom demais”. Já as mulheres reagem de outra forma: dizem sempre — “queremos um Héctor na nossa vida”. [Risos]
É uma imagem difícil de cumprir para os homens [risos]. Mas o que procurava mostrar com essa “violência sutil” que muitas vezes existe até nas ditas “boas intenções”?
Por estar toda a vida ao lado da minha irmã Miriam, vi de perto a violência constante a que ela é exposta, quase sempre de forma invisível, e o esforço adicional que uma pessoa surda tem de fazer a cada momento para se desenvolver, comunicar, estar presente. Queria mostrar essas pequenas violências quotidianas, que quase nunca se veem. Interessa-me muito mais essa vivência do dia a dia do que a abordagem que já vimos em outros filmes, onde a surdez ou a deficiência é retratada de forma idealizada, quase mágica, como se fossem superpoderes. Essa idealização nasce do desconhecimento. Só queria mostrar a quotidianidade, sem filtros nem fantasias.
Quando converso com amigas que são mães ou que se estão a preparar para sê-los, verifico que existe muitas vezes a projecção da mãe sobre os filhos, e por vezes, a devida frustração quando os filhos não correspondem à imagem idealizada. No seu filme esse tema aparece através da surdez, mas esse desejo de ver os filhos como reflexo dos pais parece algo universal.
Sim, e isso surpreendeu-me muito. Quando o filme estreou, recebi mensagens de várias mães ouvintes, sem deficiência, que diziam identificar-se com os medos de Ángela. Medos de não conseguir conectar-se com a filha, de não saber como relacionar-se, ou de que o vínculo da criança fosse mais forte com o pai. Percebi que, na verdade, são questões comuns à maternidade. Só recentemente o cinema começou a mostrar esse lado mais escuro e difícil da experiência materna. Durante muito tempo a maternidade esteve também idealizada, mas com mais mulheres a dirigir estamos a ver histórias mais reais, com as quais todas se podem identificar.

Sorda (2025)
Queria falar agora de algo que para mim é dos momentos mais interessantes do filme: a imersão sensorial ao mundo auditivo de Ángela. Quando passamos a ouvir como ela ouve, o filme ganha uma outra força. Gostava de saber como chegou a esse processo sensorial, e se Miriam esteve por trás dele a partilhar a sua experiência auditiva? E até que ponto essa construção é algo coerente com que pessoas surdas conseguem vivenciar no cinema?
Chamo a isso o “acto surdo”, esse último acto narrativo. Já o construí desde o guião. A parte mais difícil foi decidir a estrutura sonora. Poderia ter jogado mais vezes com a perspetiva sonora de Ángela, como a produtora sugeria, mas não me convencia. Isso guiaria demasiado o público de forma emocional, e não gosto desse recurso como espectadora.
Então pensei: vamos estar perto de Ángela ao longo do filme e, quando ela se quebra, quando entra em crise e o público talvez já não a consiga seguir, aí fazemos a transição. Passamos de estar perto dela para estar dentro dela, e desta maneira, através do som, o espectador termina por entendê-la. Para construir isso, Miriam reuniu-se com o designer de som e explicou como “ouve” com os aparelhos. Mas é impossível reproduzir exactamente — só a própria pessoa sabe como ouve. Fizemos pesquisas, testámos aparelhos, estudámos como funcionam, mas no fundo foi uma criação artística, tentando ser coerente com o que poderia ser a experiência de Ángela, até porque Miriam não ouve da mesma forma que a sua personagem: ela perdeu a audição mais tarde e fala melhor do que Ángela.
Também pensamos nos espectadores surdos. Há momentos em que usamos efeitos para gerar vibrações sonoras, que podem ser percebidas por quem tem restos auditivos ou usa aparelhos. Mas claro, isso varia muito de pessoa para pessoa.
Foi uma experiência rara no cinema. Lembro-me de algo semelhante em uma cena breve em “Babel” de Iñarritu, com uma personagem surda-muda, interpretada Rinko Kikuchi, numa discoteca. Sentimos algumas vibrações quando o filme passa ao seu impressionismo, mas não foca com atenção nessa particularidade ao longo da narrativa. Mas no seu filme é uma verdadeira viagem, o que leva os ouvintes a acreditar ser uma experiência muito coerente.
Posso acrescentar o “Sound of Metal” de Darius Marder, que faz um jogo interessante com o som.
Sim, sim, uma boa sugestão. Partindo agora para os novos projetos: pretende continuar a história de Ángela?
Por agora não. Confesso que tenho uma fantasia … talvez dentro de dez anos possa voltar a filmar Ángela e a relação dela com a filha, ver como estão, se continuam juntos, que novos conflitos surgem. Mas isso é apenas um sonho. Neste momento estou a pensar num novo projeto que não tem a ver com surdez ou deficiência, mas ainda não consegui avançar porque “Sorda” continua a exigir muito tempo e energia. Quero escrever, mas vocês não me deixam! [risos]
[risos] É curioso essa ideia, é muito Linklater, principalmente a trilogia “Before’”, onde vemos o casal evoluir ao longo dos anos. E o trabalho com a sua irmã, vai continuar mesmo sem a revisitação ao mundo de Ángela?
Adoraria continuar a trabalhar com a Miriam. Espero que sim.