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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"House of the Devil": utopia do terror sem terror

Hugo Gomes, 26.10.23

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Este extraordinário filme de Ti West provoca-me, assim de repente, duas reacções de espanto, sobretudo tendo-me eu como seguidor, minimamente atento, das tendências do cinema de terror norte-americano. Em primeiro lugar, este filme começa muito significativamente "entre muros", com a câmara a mover-se numa casa que poderá ser "a casa do diabo", mas que acabará por se revelar numa antecâmara dessa casa que o título a(e)nuncia. O tradicional master shot é substituído por um plano de interior e é assim, preso à materialidade daquele tempo, algures no passado recente, que "The House of the Devil" nos apresenta a sua protagonista (Jocelin Donahue), uma jovem em busca de casa, em busca de dinheiro para pagar a renda, em busca de um emprego para arranjar dinheiro... e que vai parar àquela morada assaz suspeita.

No percurso até lá, a mesma câmara vai saboreando cada instante desse seu tempo incerto: não estamos no século XXI, nem tão-pouco nos anos 90... cenário a cenário, as roupas e os objectos vão-nos "deslocando" temporalmente para, no limite, meados dos anos 80; para, enfim, outra América e outros cinemas. É retro? É, mas sem grande deslumbramento. São os anos 80 filmados como se fossem 2011, mas num processo de degustação material muito lento, isto é, muito pouco contemporâneo - ou num ritmo que se impõe contemporaneamente, quando o melhor cinema de velhos masters of horror, tais como Carpenter, de Argento e de Hooper, nos deixa nostálgicos? Enfim, a reflexão sobre o tempo, a capacidade (maturidade mesmo) que Ti West revela em não se prender ao filme-homenagem-de-um-tempo-em-que-os-filmes-de-terror-eram-assim é notável.

Outra coisa espantosa: como em "Halloween", os sinais gráficos do género tardam em chegar ao ecrã, fazendo reverter todos os códigos pr(é)escritos do género institucionalizado do filme de terror CONTRA as próprias expectativas do espectador. Isto é, a certa altura, "The House of the Devil" leva-nos a interrogar: será isto mesmo um filme de terror ou um filme de terror que apenas (pré-)existe na nossa cabeça? "Halloween" continua a ser o mais radical objecto cinematográfico a explorar esta fronteira entre o género e a sua impossível, ou desnecessária, concretização, mas "The House of the Devil" é, dos filmes de terror contemporâneos, provavelmente o que leva mais longe esta ideia, ao ponto de a certa altura eu ter julgado ver pela primeira vez realizada uma das minhas mais velhas fantasias: um filme de terror sem verdadeiros sustos, sem violência ou sangue, um "quase" filme de terror, ou seja, um objecto propositadamente falho - isto é, treslendo em toda a linha as receitas do género - que apenas explore a paranóia do espectador de cinema, ela em si mesma material de sobra para se aguentar hora e meia de suspense puro, de um "what if?" angustiante, que, no final, soçobra. Isto é, como seria "The House of the Devil" sem os seus minutos finais? Ainda melhor, estou certo.

 

*Texto da autoria de Luís Mendonça, doutorado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) com uma tese publicada em 2017 pela Edições Colibri, "Fotografia e Cinema Moderno: Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra". Publicou recentemente "Majestosa Imobilidade: Contributo para uma Teoria do Fotograma" pela Edições 70. É coeditor do site À Pala de Walsh, programador na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e docente-precário na NOVA FCSH.