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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Fogo que arde e se vê ...

Hugo Gomes, 13.10.24

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Karyna Gomes

Puxando da memória, afirmo sem receios que não deverá existir cineasta português com um percurso tão reconhecível e definido como o de Pedro Costa, e, tomando “As Filhas do Fogo” como objeto de estudo, é “de caras” (o emprego não é ao acaso) que a sua rota artística delineia um circuito plenamente percorrido e interagindo com rostos familiares, presenças assombrosas e fantasmas que persistem como elos entre o passado, o presente e o futuro ali inquinado. 

Nesta projeção de multi-plataforma, tão bem aconchegado está o espectador para com o seu cinema, cuja entrada é instantânea a um triplo split screen. Cada uma dessas telas é representada, ou melhor, protagonizada, por uma diferente mulher, de vocalidades partilháveis, por vezes uníssonas, unidas em prol de uma só cantoria. Esta união, tanto sonora como espectral, contrasta não só para com as delimitações de cada tela, como também com a alegoria da sua separação, cujo "responsável" é o círculo de fogo oriundo da fúria terrestre, de magma colerético, e de erupções enquanto ameaças de castigo divino, encorpado no digno ponto final: na reciclagem das filmagens de Orlando Ribeiro – “A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo”, de 1951, que atribuiu um contexto não apenas cénico, mas também intemporal. 

Estas mesmas imagens serviram de prelúdio a “Casa de Lava (1994), considerado por muitos o fracassado filme de Costa e igualmente o trunfo de Áses, fruto de uma reinvenção cabo-verdiana de “I Walked with a Zombie” (1943), do "mais que tudo" realizador Jacques Tourneur. A partir desse momento, a sua carreira nunca mais foi a mesma (e a experiência seguinte, “Ossos”, remexeu nesse inquieto “bicho-carpinteiro” do cineasta). Assim, este encontro cíclico de signos, de sinais de fogo e de fumo, de figuras e índices autorais, revelam um universo seu, apenas envelopado e deixado ao deus-dará para que o espectador espreite, curiosamente, e esgueirar-se sem medos.

As Filhas do Fogo”, um exercício operático – gerado pelo sopro da Passacaille de Biagio Marini (op. 22, 1655), e fortalecido por uma adaptação letrista de uma canção de embalar ucraniana – é essa súbita estranheza que nos embate e, logo após, nos abandona sem resistência, embalados. O olhar pleno de Elizabeth Pinard percorre “invisivelmente” um cenário misto de cinzas e brasas; a queda de Alice Costa inscreve corporalmente outras silhuetas (Ingrid Bergman em “Stromboli”, Inês de Medeiros em “Casa da Lava”); e, finalmente, as retinas atormentadas de Karyna Gomes, espreitando sorrateiramente, como se tal a protegesse de algo, vizinhas, coabitadas neste trecho musical, cantarolando para memórias e embutidos espíritos, daqueles que só o cinema, e o de Costa perfeitamente o sabe, invocam como extensão do nosso quotidiano. 

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Elizabeth Pinard

Mais do que atrizes, pelo menos não seguindo o senso comum da definição, performistas (mais enquadrado), trazem à vida as três mulheres, divas de ópera por cerca de oito minutos [musicado pelos Musicos do Tejo], que ditam a sala de cinema, convertendo-a nos seus respectivos palcos e fronteiras (o espectador toma a decisão, tal como todos o múltiplos split screens, de escolher o seu plano, a sua história, a sua mulher). Costa deu-lhes a oportunidade de, temporariamente, se despedirem das suas velhas carnes, associando-se a uma cantoria entre os mortos e os vivos na mente.

Mentor de um cinema sem classificação ou repreensão, o realizador cria um canto de ossadas e tenros tendões que levantam um “monstro” cinematográfico, a que chamamos a sua filmografia. Já em “As Filhas do Fogo”, interagimos com apenas uma costela dessa "criatura fantasmagórica", que, como se sabe, anatomicamente escuda o corpo dessa filmografia. É uma entrada, um atalho, digamos, para uma essência desse universo (palavra tão banalizada hoje em dia no cinema), cheio de contraditórios, curvas e contracurvas e regressões sem saudosismos ou nostalgia. Cinema em movimento, a do Pedro Costa.