Fim da Humanidade, o "sonho húmido" secreto da Civilização
"Sonhamos” com a destruição da civilização desde o seu nascimento. Faz parte do nosso ADN. A submersão de Atlântida, a queda do Império Romano, as sete pragas do Egipto, ou, como é recentemente projetado, o Apocalipse (essa ideia nunca caduca), são sintomas de um desejo autodestrutivo que encontra a sua romantização nas diferentes plataformas artísticas, nomeadamente no Cinema. Com “Le Règne Animal”, somos levados a outro medo, talvez correlativo ao fim da Humanidade como a conhecemos; referimo-nos à perda das nossas características enquanto seres “civilizados”, ao retrocesso às nossas ancestralidades, ou seja, ao primitivismo, ao animalesco.
Essa ideia foi recentemente transmitida em grande escala no “War of the Planet of the Apes”, a terceira parte das prequelas rebeldes do clássico de Franklin J. Schaffner, em que uma misteriosa doença atinge os sobreviventes humanos do conflito com os símios sapientes, reduzindo-os a “selvagens”, explorando a hipótese de uma animalidade como erradicação do antropocentrismo. No entanto, entendemos que, mesmo ao romantizar/fabular esse desfecho, podemos extrair dele um reflexo da nossa contemporaneidade.
Voltando ao “Le Règne Animal”, Thomas Cailley, que já havia conduzido a Humanidade (num contexto íntimo) ao seu próprio survivalismo com a primeira longa - “Les Combattants” (filme que revelou a atriz "desaparecida em combate" Adèle Haenel) - disfarça-se numa variação cine-apocalíptica, substituindo os subutilizados zombies e outros mortos-vivos numa epidemia que gradativamente converte humanos em bestas híbridas. A narrativa segue a ótica de uma relação entre pai e filho, sendo este último inadvertidamente portador da misteriosa patologia. Digamos que poderíamos antever o pior em “Le Règne Animal” se a sua produção fosse fruto dos estúdios americanos, previsivelmente preenchida com CGI à vontade ou embrenhada nos seus clichés para as grandes massas.
Ora, sendo uma produção francesa (leia-se europeia) e tecnicamente bem alicerçada, este cenário algo distópico relega-se para segundo plano, nunca ocultado, até porque a panóplia de criações antrozoológicas evoca ‘fantasmas’ da sua contemporaneidade [Covid, refugiados, populismo]. O resto é um drama familiar com algumas veias shyamalianas, nada formidável, nem vergonhosamente rejeitado. Porém, “Le Règne Animal” vale pela sua sugestão, pelas possibilidades, nunca cumpridas, de como pôr termo à nossa Humanidade de maneira orgânica. Uma contemplação sobre o retorno às reminiscências naturais que, ironicamente, sempre repudiamos no âmbito do nosso progresso, tudo isso no velcro de um “monster movie”