Filme das Feias-Artes
Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção.
A adaptação do bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgos Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto?
Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica.
Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …