Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Ferrari", um filme de Fé?

Hugo Gomes, 03.01.24

ferrari_-_szenen_-_ov_-_02_scene_picture_lorenzo_s

"Ferrari", a biografia assinada por Michael Mann sobre uma das incontornáveis figuras dos bastidores das corridas automobilísticas, fazia antever a pior faceta do realizador ausente dos grandes ecrãs desde “Blackhat” (2015), filme desconexo e um pouco subserviente do universo dos hackers e pirataria informática. Pensávamos no Mann de “Ali” (2001), na esquematização segundo o velho termo da biopic; porém, “macacos nos mordam”, “Ferrari”, mesmo a milhas dos seus melhores trabalhos, é um Mann como desejávamos que fosse, o Mann do “The Insider” (1999), o Mann catastrofista que orquestra nas sombras, iluminando os fardos dos seus personagens condenados desde então.

Porém, também há rasgos de outro Mann, o tão conhecido de “Thief” (1981) ou “Heat” (1995), o Mann romântico, não no sentido vulgar da palavra, mas aquele que acredita, ou aliás que as suas personagens acreditem ser meras carcaças para algo maior que eles, esse “romantismo” do qual James Caan fazia juras durante os seus agendados golpes ou Robert De Niro cedendo ao fatalismo e fatal destino da sua criminalidade de conduta (“Brother, you are going down”). Em “Ferrari”, Enzo (não é preciso mencionar apelido), ostenta uma inabalável crença no seu destino, mesmo que o “barco” por onde navega esteja à beira do naufrágio, ou que a vida pessoal (a disputa de duas mulheres, duas famílias, dois mundos) seja instável e implacável, e mesmo assim é a corrida, o fardo maior que a sua existência, que evidenciamos o seu Deus, o seu Império ali cobiçado.

Numa sequência em jeito de raspanete para com os seus pilotos, durante a refeição, Adam Driver, o nosso il commendatore, explicita a sua fé num discurso motivacional, ora desesperado e raivoso, do mesmo desespero ao qual atribuímos também aquele a que Caan, perante o seu encontro no dinner, falou de um sonho, de uma promessa, de uma segunda oportunidade. No caso de Ferrari, a reza deve ser exercida pelos outros, pelo seu “exército de Deus”, vulgo, os seus corredores. Michael Mann resolve assim fazer de “Ferrari” um filme sobre Fé, sem se condenar aos castigos da evangelização, é nessa fé que Enzo pavoneia perante um conflito interior, a tragédia da sua pessoa, o pacto mefistotélico que parece ter negociado para catapultar o próprio êxito, mas a vida encarregar-se-á de trazer mais sangue e mártires.

Ferrari” é esse filme de pessoas, acima da maquinaria que a marca poderia resumir, até porque as corridas são o que de menos entusiasmante aqui apresenta, digamos que a “corrida contra o tempo” de Enzo seja a principal pista de Mann, o resto veio por acréscimo à contextualização, e nota-se, de alguma maneira, no CGI falhado com que submete certas e determinadas sequências e infortúnios do desporto de quatro rodas. Nessa fusão entre carne e aço, Ford V. Ferrari de James Mangold provou mais capacidade e impacto nessa hibridez, “Ferrari”, por outro lado, é um “character study”, o regresso de Mann ao seu cinema masculino povoado por personagens masculinas de propósitos maiores do que as suas próprias figuras. É a jornada do herói no seu termo clássico hollywoodesco, aqui desfigurado a do ambíguo anti-herói.

2 comentários

Comentar post