Fenómenos do Entroncamento
Nem tudo se deixa ver com nitidez. Nem tudo é preto ou branco. O cinzento não é apenas uma cor, é a imagem da complexidade que atravessa a temática. Em tempos como os que vivemos, em que a política desperta os nossos instintos mais primitivos, refugiamo-nos nesse binarismo - anterior à popularização do termo nas várias línguas, que é o maniqueísmo -, um filme como este de Pedro Cabeleira posiciona-se nesse lugar: o do incompreendido, do rafeiro, o do animalesco.
A tese desta inspiradíssima segunda longa-metragem é clara: todos somos “bicho do mato”. Não importa a origem, o teor melânico, a cultura ou profissão. O que interessa é onde estamos, o agora, o presente, e esse lugar é o Entroncamento, a terra de "fenómenos", terra de comboios, fim da linha para alguns, o subúrbio do subúrbio. É dessa terra que desaguam estas intrigas de bairro, ilícitos e fanicos, turbilhão étnico a borbulhar pelas costuras. E os outros, os miseráveis, refugiados nas suas casas, proclamam uma terra que já foi sua e que os "outros" tomaram, ou melhor, arrancaram das suas mãos. Por outro lado, confortam-se com uma cervejinha gelada depois do treino. Um bando de polícias à paisana amortece as inquietações entre goles de cevada engarrafada e a mesma cantiga de bandido. Apontam a barbárie dos outros, perfilham a lei como sua — nua e desnutrida. É o tipo de sermão sem rodeios, de ouvidos moucos, que faz crescer extremas-direitas europeístas ou, no caso português, o partido chegófilo, cujos ares petrificam o descontentamento, o desespero, a revolta e, sobretudo, o ódio pelo outro.
Ter razão não é um absolutismo, é antes um relativismo. Porque essa mesma cinza que alcatroa os bairros domina a persistência do olhar. É a violência em jogo, o primeiro acto, a primeira intenção. Desde a abertura, um clima de suspeita: do primeiro lapso até ao desconhecido “primo”, sabe-se lá de onde, que resolve a barafunda com outra ameaça: a do mais forte, ou simplesmente a do mais armado. Lei do asfalto manhoso que cobre esses guetos enfaixados. "Entroncamento", título apropriado das suas raízes, prolonga o desamparo de "Verão Danado", oito anos antes. Só que, em vez de gerações à rasca, é a rasca de uma geração: gente sem rumo, sem passado, do imediato: a do acto de enriquecer instantaneamente como fuga possível e imaginária à sua condenada condição social.
Mas recomecemos desse início em conflito, o mote orienta-nos para aquilo que viemos ver: um grande filme de criminosos, criminais e crimes. Credível como poucos conseguiram, e com isto na ausência do rigor performativo de Canijo ou do realismo simulado de Marco Martins. Cabeleira tem outro tipo de credibilidade, assim como de vivência, e dessa manha extrai a sua seiva, a que cobre todo o Entroncamento, a cidade como o filme. Portanto, com o verossímil podemos de facto contar, e do comboio que vem do Norte também. À boleia da ferrovia uma intrusa chega aos arredores: Laura (uma camaleónica Ana Villaça, "By Flávio"), a enzima que despoletará ainda mais o caos na ordem desordeira do bairro. Mulher de rua, de tom ameaçador, palavras grossas, olhar de igual feitio, sem dono — como muitos apontam — percorre a guetização como raposa matreira, escolhendo estrategicamente a sua presa.
Dela vem o coração do "Entroncamento", mas não é dela que parte o delinear da narrativa, mas sim dos estilhaços dos subenredos que se cruzam e sintonizam com a sua indulgência. No fundo, Cabeleira elaborou um filme de relações, seja de que lado da lei estiverem. A recordar, e muito bem, o ambiente nocturno que remete (talvez também pela banda sonora) para a obra de Michael Mann: de "Collateral" a "Heat", de "Thief" e, porque não, "Miami Vice". Um produto contrafeito do autor americano com um cunho pessoal de um português com ‘sangue na guelra’.
O resultado só poderia ser a estética de um crime encantado pelo seu desencantamento. Mas voltando ao ponto inicial: é um filme sobre a política corrente, sem nunca a mencionar, e nesse aspecto — antes que venham com o tipo de cinema sobreliteral, feito papa para alimentar espectadores como passarinhos bebés com a regurgitação dos seus progenitores — "Entroncamento" solicita a cumplicidade do espectador. Para o interpretar nas entrelinhas, como um autêntico parceiro do crime. Um novo fenómeno do Entroncamento!