Falando com Sandra Faleiro: "Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira"
“Estamos no Ar”, primeira incursão de Diogo Costa Amarante (finalmente!) ao formato de longa-metragem, é uma comédia sobre solidões e aparentes soluções a esse mal comum numa reunião de três personagens, de diferentes gerações, mas pertencentes à mesma família. No seio familiar, dito desta maneira, encontramos Fátima, mulher frustrada com o seu isolamento corporal e sexual, atormentada pelo rato que se pavoneia pela casa em todas noites, e delirada pelas fantasias sexuais que o vizinho transmite. Personagem, essa, encorporada pela Sandra Faleiro, de carreira extensa no palco, ora reconhecida por várias gerações em seriados televisivos, mas que tem pouco a pouco conquistado lugar no cinema português. Após “A Herdade”, “Estamos no Ar” é o novo desafio para brilhar na grande tela.
O Cinematograficamente Falando … conversou com a atriz sobre esta experiência, sobre a sua Fátima e essas tais dores.
Começo pela questão da génese deste projeto, aliás de como chegou a “Estamos no Ar”?
Um convite do Diogo [Costa Amarante]. Imediatamente disse que sim após ler o argumento.
Recordo uma entrevista no qual refere que o grande impulso para entrar neste filme, não foi a personagem em si, mas da “poética de Costa Amarante”.
Sim, quer dizer, a personagem é maravilhosa, mas foi mesmo o guião que me conquistou. Aquelas três personagens que se conectam com outras, que, por sua vez, estão unidas pela solidão. Há uma melancolia que atravessa o filme e, ao mesmo tempo, uma ternura inerente, tudo isso embrulhado num certo sentido de humor.
Ainda bem que mencionou a solidão porque estamos perante um filme sobre solidão e as suas diferentes nuances, cada uma destas personagens sente-se só e procura “curar-se” de alguma forma. Curiosamente o “Estamos no Ar” decorre numa cidade, um poço multi-populacional e atulhado de gente, que entra em contradição com o senso de “estar só”. Podemos dizer que o ser humano é um ser naturalmente só?
Sim, pode acontecer em qualquer lado. Este filme tem essa concepção da cidade – quando ele filma os prédios em volta da piscina, cria uma espécie de muralha de asfalto que isola aquele local, ou até mesmo os figurantes, tão automatizados, tão alheios. E o filme passa-se, em grande parte, durante a noite, com essa pulsação própria, e mesmo entre encontros e desencontros, aborda a nossa natureza humana, o facto de sermos todos seres solitários, quer seja na cidade, quer seja em qualquer outro lugar. “Estamos no Ar” transmite essa solidão de uma forma muito bonita.
Há um elemento muito entranhado na nossa sociedade, que é a farda, que Diogo Costa Amarante parece reparar e há sua maneira desconstruir. Há toda uma pulsão sexualizada nesse elemento, e isso tem influência na sua personagem.
Neste caso, o da minha personagem, Fátima, a farda representa uma certa segurança, como porto de abrigo, uma proteção. No caso do Carloto [Cotta], é mais kinky [risos], uma fantasia.
E depois temos o rato, um animal de contornos metafóricos.
O rato apela a esse lado mais obscuro, a uma sexualidade escondida. Acho que, neste caso, ela é uma mulher um pouco tolhida — não diria reprimida, porque considero essa palavra um pouco forte — mas, de facto, tolhida pela vida. Está numa fase de procura por si própria e, ao mesmo tempo, sente esses impulsos sexuais, dos quais também recua. O rato representa precisamente essa sexualidade e essa repressão que ela tem e que não chega a desenvolver.
Durante “A Herdade” de Tiago Guedes, abordou Catherine DeNeuve como inspiração para a sua personagem …
Sim, como figura ...
Em “Estamos no Ar” inspirou-se em alguma outra figura?
É uma miscelânea, digamos. Ao longo de várias fases da vida, vamos juntando pedaços das nossas histórias, dos amigos, de mim própria, de outros atores e até de pinturas. Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira.
Ou seja, habitualmente traz algo de seu às suas personagens …
Sou sempre eu [risos], não há grande volta a dar. É o meu corpo, a minha voz, é como filtro, encaixo e interpreto as personagens. Em cada uma delas, estou sempre eu [risos].
Com “A Herdade” entrou em pleno no cinema português e agora com “Estamos no Ar” adquire o protagonismo que o filme seja de três narrativas entrelaçadas, mas mesmo é a sua história o centro e o nó das de Carloto Cotta e Valerie Braddell. Gostaria que me falasse deste percurso no cinema português.
Não me considero uma atriz de cinema português [risos]. Até porque faço pouco; como há pouco cinema, acabo por fazer pouco. Se houvesse mais, possivelmente faria mais cinema.
Mas tem o desejar de fazer mais?
Claro, ainda este ano trabalhei com Paolo Marinou-Blanco em "Sonhar com Leões", e com o Simão Cayatte [“A Queda”], mas foram pequenas participações, o que me fascina mesmo são estes mergulhos profundos que o cinema tem. Possuem uma linguagem completamente diferente do teatro e da televisão, exige outro registo de trabalho, o que agrada imenso porque tem outro filigrana, é como se tivéssemos uma lupa sobre nós. É outra linguagem ... é claro que gostava de fazer mais, mas não tenho grandes ilusões ou ambições nesse sentido. Vou deixando fluir, acontecer, não ficar ansiosa se não fizer.
Tenho ouvido aqui e ali, detalhes e notas sobre “Sonhar com Leões”, inclusive uma colega sua [Joana Ribeiro] falou-me um pouco desse filme.
É uma comédia negra, cómico-trágica sobre a eutanásia, sobre o desespero que é o das pessoas estarem em sofrimento e levanta estas questões pertinentes, como também aborda os oportunistas, e mais uma vez, é sobre a solidão.
“Sonhar com Leões”, assim como “Estamos no Ar”, são ambas comédias. Gostaria que me falasse sobre a sua relação com o género, ou tom digamos, e as suas dificuldades.
Adoro fazer comédia, agora, as dificuldades de o fazer, julgo que me comédia devemos sempre procurar uma verdade, se não fica desinteressante. O importante da comédia é a capacidade de rirmos de nós próprios. Quando é só "bonecos", é treta ...
Pegando na questão da comédia, lembro que vi uma peça em que era a protagonista - “O Livro de Pantagruel” - uma encenação de Ricardo Neves-Neves, em que o humor, negro e sarcástico, e igualmente politizado estava presente. Esta volta para referir aquele que é o seu habitat natural, o teatro. E até porque recentemente contracenou com António Mortágua numa adaptação do “Um Eléctrico Chamado Desejo” de Tennessee Williams.
Sim, foi encenado pelo Bruno Bravo. O teatro será sempre a minha casa; foi onde comecei, e sinto sempre a falta de o fazer. É um lugar de procura, de autodescoberta, e, enquanto continuar a ser assim, fico satisfeita. Mas, na realidade, também preciso de outras 'coisas', de outras realidades.
… e daí, o Cinema estar na equação?
Sinceramente, não tenho a possibilidade de escolher e controlar a minha carreira. Vou apenas “andando" e tento aproveitar o que vai surgindo. Tenho tido sorte, porque têm aparecido projetos distintos e variados, mas, na verdade, não tenho como dizer que sim ou que não ou escolher meticulosamente o que vou fazer — em Portugal isso é praticamente impossível. A maior liberdade de escolha que tenho é quando enceno, nas peças que decido montar e assim por diante, porque, como atriz, o que acontece é o que vai sendo sugerido.
Julgo que foi em entrevista para o Teatro São Luiz que a Sandra Faleiro falou da sua insegurança e como ela funciona como seu mote para avançar e abraçar os desafios.
Tem a ver com um lado obstinado, de me desafiar e de tentar ultrapassar obstáculos — mas acho que, de uma forma ou de outra, todos nós fazemos isso. O trabalho de ator exige muito e requer uma grande disponibilidade; é desgastante e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Também traz à superfície todos aqueles fantasmas que temos, as inseguranças, as dúvidas. Todos temos que lidar com isso constantemente.
Só para terminar, gostava que falasse sobre os seus novos projetos, seja em que plataforma for.
Vou entrar numa nova peça com o Ricardo Neves-Neves, que estará no Teatro Trindade em dezembro, e também vou voltar a trabalhar com a Cristina Carvalhal. E pronto... este ano continua assim, mais um ano muito teatral.