Falando com Miguel Lobo Antunes, o "patrão do techno" ao ritmo de João Nicolau
Descrito como o mais “discreto” do clã Lobo Antunes, Miguel estreou-se aos 70 anos nos grandes ecrãs com a terceira longa-metragem de João Nicolau.
Em “Technoboss” ele é Luís Rovisco, um veterano técnico de sistemas de segurança que tenta fugir à reforma que o ameaça numa espécie de demanda para ressuscitar um amor prescrito. Seguindo estrada fora até ao Algarve, uma viagem que contagia pelo seu onirismo e absurdismo, e obviamente pelas músicas que ficam no ouvido. O filme valeu-lhe elogios pela candura da sua personagem, tendo integrado a competição internacional do Festival de Locarno.
Licenciado em Direito, Miguel trabalhou como jurista para depois percorrer alguns dos mais importantes pólos de cultura do nosso país: Culturgest, Centro Cultural de Belém e Festival Internacional de Música de Mafra. Foi ainda vice-presidente do Instituto Português do Cinema nos anos 80 e reformou-se, por fim, no ano passado. Quando tudo parecia indicar que iria atirar “a toalha ao chão” surge a oportunidade de trabalhar diretamente no Cinema, e muito mais, ser protagonista de um filme à sua medida.
O agora ator recebeu-me no seu apartamento com vista para a Estrada da Luz, Lisboa. Na sua sala era impossível não reparar nas prateleiras preenchidas por CDs de músicas de outros tempos. Miguel falou-nos sobre o seu “orgulho cinematográfico”, mas acima de tudo demonstrou a sua preocupação perante a reforma e o vazio que isso trará à sua vida. Digamos que em Miguel Lobo Antunes existe um Luís Rovisco apesar da constante negação. Um possível medo de não ser mais útil para o que quer que seja.
Como se tornou protagonista de um filme, visto não ter qualquer experiência no ramo?
O Nicolau tinha planeado fazer este filme com um ator profissional, embora tenha trabalho noutros filmes com atores não profissionais. O guião foi sendo feito, chegando a um ponto em que a exigência da personagem era muito grande e começou a fazer um casting, quer de atores profissionais, quer de cantores profissionais. No meio desse processo, encontrou-me numa festa. Conversamos e depois questionou-me se eu não queria fazer um casting. Eu respondi que não me importava, visto que iria entrar na reforma e que até poderia ser uma experiência divertida. Assim, Nicolau atribuiu-me umas cenas, uma canção e contou-me vagamente quem era a minha personagem. Ensaiei e passei para a segunda eliminatória, que era a final. Aí contracenei com mais atores, incluindo a Luísa Cruz que iria fazer o meu par no filme. E pronto, fui aceite.
Houve aulas de canto? Como aperfeiçoou a sua voz? Já agora, também de atuação?
Depois de ter sido escolhido, passamos à fase dos ensaios. Aperfeiçoar-me através de algumas aulas de canto. Não foram muitas, mas as suficientes para aprender sobre a respiração e ampliação da voz. A minha voz aumentou com aquele treino. Deu-me mais segurança no meu próprio canto. Claro que com isto não me tornei um cantor, mas apto o suficiente para as minhas cenas musicais. Em paralelo, tinha aulas de representação.
O argumento já estava completo ou foi maleando durante a produção? Teve algum contributo para o guião?
O João Nicolau deu-me para as minhas mãos o guião completo. Todas as semanas tínhamos ensaios. A minha preocupação era decorar o que teria que fazer até ao próximo ensaio, o que me dava uma ideia de não conhecer a história. As cenas não eram ensaiadas de forma cronológica, eram por outras razões. O João era quem decidia a ordem dos ensaios. Também tinham em conta a disponibilidade dos atores com que contracenava. Portanto, nunca estudei a personagem. Nunca peguei um guião e perguntei: “quem é este fulano? Porque é que ele está assim na vida?”. Não era coisa que me preocupava. O que realmente preocupava-me era fazer cada cena bem feita.
Encontramos no Luís Rovisco algum traço autobiográfico?
Não mesmo.
É certo que em muitas entrevistas, perante algumas questões específicas sobre o filme, costuma responder que “o filme é do João Nicolau“. Face a esta obra, não sente responsabilidade pelo mesmo?
Não … quer dizer, eu tinha a perfeita consciência que se falhasse, o filme iria para o galheiro, mas como foi o João que me escolheu, apenas teria que fazer exatamente o que ele pedia. Ele é que foi o criador da personagem, do ator e do filme. Portanto, eu tinha que agradar-lhe. Não me sinto responsável pelo filme.
Tendo em conta que exerceu o cargo de vice-presidente do Instituto de Cinema Português entre 1983 e 1986, para além do seu invejável trabalho na curadoria cultural do nosso país, como vê o cinema português? Já agora, a cultura em geral no nosso país?
Daquilo que conheço sobre a produção do nosso cinema (obviamente que não vi tudo, mas frequentei várias sessões do Indielisboa e do Doclisboa, visto que estava na Culturgest), o que me faz admirar estes novos realizadores é a vitalidade. Ou seja, a existência de imensos realizadores que fazem filmes por tuta-e-meia e que se esforçam em trazer a nós criatividade.
Por uma razão qualquer – suponho pelo facto de não existir um mercado português – há uma criatividade enorme. São filmes que alcançam o mérito internacional mesmo não tendo público. Provavelmente, por ser um cinema subsidiado, encontramos nele uma originalidade propícia. Caso tivéssemos indústria e nos regêssemos por ela, os filmes acabariam por ser todos iguais a um certo cinema americano, ao modelo do êxito que não é mais do que a citação de formas familiares para os espectadores. Não havendo mercado, permite-se uma liberdade enorme de escolhas. Por isso, nem tudo é bom, é certo, mas no meu ponto de vista suscita um cinema muito interessante feito por gente nova com meios bastante precários. Comparado com aquilo que se faz nos outros países, Portugal é um caso excecional.
Quanto à cultura, isso seria uma outra e longa conversa [risos], mas equiparada à questão do cinema. Há uma vitalidade, principalmente no circuito lisboeta, que não existia há 20 anos. É notável que haja mais juventude e sangue novo nos meios de criação, produção e realização. Tenho imensos filhos de amigos meus que estão a aventurar-se nestes ramos. Voltando a frisar, nem tudo é bom, mas para existirem “coisas” de qualidade é preciso que haja variedade e sobretudo quantidade.
A sua personagem recusa a reforma, prossegue estrada fora na promessa de reviver um amor antigo. Não sei se encararia uma jornada romântica propriamente dita, mas possivelmente uma forma de repescar o passado. E a romantização desse passado. Visto que você reformou-se, costuma olhar para o passado e desejar reviver esses momentos de glória?
Não. Não olho para o passado, nem acho que a personagem o faça. A minha personagem tem um problema, que é o facto de ir-se reformar e isso é referido diversas vezes. Ele está no fim da carreira, e nós – enquanto espectadores – não sabemos como ele vai encarar isso; o que vai fazer ou não fazer; o que realmente o preocupa. As únicas indicações que existem são que ele próprio querer decidir quando reformar-se, e a solução para isso é uma nova vida do foro sentimental. Uma nova vida para a reforma.
Você procura uma vida nova pós-reforma?
Inevitavelmente, nós “caímos” para uma vida nova no preciso momento em que paramos de trabalhar. No meu caso, tive sorte. Tive alguns meses aflito por não saber o que fazer, e de repente surge-me um filme. Há um ano que a minha vida tem estado ocupada com isto, mas terá que acabar um dia. Nada dura para sempre. Tenho outros projetos, coisas que quero fazer, algumas delas ainda estão em fase de decisão …
No Cinema?
Não, mas tem a ver com a Cultura. Naquilo que posso ser útil. Mas não faço ideia. Ainda estou na fase de planos.
Sente que ainda pode ser útil para a Cultura do nosso país?
Cultura? Não sei se é a palavra exata, mas para a comunidade talvez. O trabalho é sempre dirigido aos outros, deixando de trabalhar temos que encontrar soluções para ter ainda um bocadinho de atividade social, digamos assim. Existe a presunção de que uma pessoa serve para alguma coisa. [risos]
Visto que trabalhou em curadoria, como “venderia” um filme como “Technoboss”?
É um filme que pode agradar a pessoas muito diferentes. Há muitos que acham que o cinema português é um território muito eremítico, pesado, difícil, e este filme não corresponde a nada disso. É um filme alegre, bem-disposto sem nunca vergar pelo arquétipo de “filme americano”. Uma das características pelo qual gosto deste filme, é que usa processos cinematográficos que não são usuais. Utiliza formas de narrar que são próprias do Cinema, mas que não são lineares aos filmes familiares. Com isso provoca uma certa estranheza principalmente nos elementos oníricos. Há sempre um humor em “Technoboss” que é muito permanente. Depois existem as músicas, que na minha opinião são bonitas.
O que me têm dito é que as pessoas saem bem com a vida, que é o que procuram nos filmes. Mas também há um lado reflexivo. É todo um rol de experiências que resultam em diferentes públicos, sejam os mais cinéfilos ou os mais lúdicos.
E o facto de ter sido a sua primeira experiência na atuação e o filme ter chegado à competição de um festival de renome como Locarno. Como se sentiu?
Isso é com o João Nicolau. O filme é dele. [risos] Tive a sorte de quando o filme estreou em Locarno. Li as primeiras críticas que louvavam o meu trabalho e isso para mim foi importantíssimo. A minha atuação foi um esforço e o facto de tê-lo visto reconhecido pelos outros foi uma alegria. As críticas deram-me uma segurança que eu próprio não tinha.
Liga às críticas?
Sim, ligo. Não se está imune às críticas. E eu sou muito inseguro em relação ao que fazia e ao que faço. Neste trabalho em particular, onde não tinha experiência nenhuma, se o primeiro objetivo de agradar ao realizador estava atingido, faltava apenas aos outros. Faltava agradar aos meus filhos, aos meus amigos e a mais pessoas.
Os seus filhos já viram?
Já. Gostaram. Pelo menos foi o que disseram. [risos] Também nunca diriam outra coisa.