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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Falando com Jorge Jácome: "uma reivindicação política a presença de 'Super Natural' nas salas"

Hugo Gomes, 27.06.23

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Caranguejos pensantes, frutas que gemem de prazer, sereias, uma entidade que nos acompanha dentro e fora da tela, elementos, alguns dos quais devemos acentuar, que confirmam "Super Natural" como uma experiência sensorial exploradora das virtudes da sala de cinema. Num tempo em que o streaming domina e o espectador de cinema se torna sedentário, quase eremita da sua própria domesticidade, filmes requintados e estranhos assumem-se como um desafio, não apenas para os corajosos, mas para aqueles que desejam escapar da realidade que os “aprisiona”. Filmado na ilha da Madeira, é natural (e super, aliás) que Jorge Jácome tenha avançado para o formato de longa-metragem. No entanto, suspeitávamos que o faria através de um projeto eclético, inclusivo, visualmente criativo na sua abordagem e linguagem. Descrever "Super Natural" é uma tarefa e tanto, mas é a sua passagem, tanto corporal como espiritual, que no nosso papel enquanto audiência nos marca. Marcando pela diferença.

Foquemo-nos na conversa com o realizador, nos diálogos sobre um evento, estranho como tudo, mas ainda assim um evento puramente cinematográfico.

Eu vi "Super Natural" no "Indielisboa" de 2022, ou seja, um ano antes da sua estreia comercial. O que permaneceu foi o espectro do próprio filme, que proporciona uma grande experiência em sala. Mas vamos agora voltar à génese do projeto... Foi uma espécie de encomenda, que inicialmente não tinha como objetivo tornar-se um filme, mas acabou por se transformar nisso. Como é que foi esse trajeto?

Exacto! A história começa com o "Dançando com a Diferença", sediada no Funchal, uma companhia de bailarinos de dança que reúne pessoas com e sem deficiência, e que costuma trabalhar com outros criadores, normalmente, de dança, que são os bailarinos, e artistas provenientes das artes performativas. Convidou o Teatro Praga para, em conjunto, desenvolverem uma peça para palco.

Entretanto aconteceu a Covid e rapidamente começaram a perceber que iria ser muito difícil este projeto avançar, principalmente nas condições de apresentação. Então o André Teodósio, do Teatro Praga, lembrou-se da possibilidade de, em vez de trabalharem num projeto para palco, ponderarem a possibilidade de fazer um filme, vamos chamar-lhe assim. E foi então que o André me convidou para integrar esta combinação criativa. O que aconteceu a partir daí foi que estivemos duas semanas na Madeira a filmar, a recolher imagens, a recolher ideias, a trabalhar em conjunto com os bailarinos da companhia e pouco a pouco este projeto começou a transformar-se num que viria a ser agora esta longa-metragem que estamos a apresentar.

Curiosamente, este é o seu salto para o território das longas-metragens! Você trabalhou em muitas curtas, sendo que nesta passagem preserva um certo estilo, especialmente em comparação com o seu anterior "Past Perfect" (2017). Mas falando agora sobre o Funchal, Madeira, e a exploração da própria ilha, é verdade que esta foi a sua primeira vez na região? Quanto ao filme, neste caso a temática do mar, das paisagens e da ribeirinha, como foi feita a escolha desse tema e sobre o que exatamente se trata? E se esses elementos de certa forma também prestam uma homenagem à própria ilha ou assumem um teor diarístico na sua descoberta a esse espaço?

Então, a ilha da Madeira surge naturalmente porque é onde a companhia está sediada. No entanto, mesmo antes de irmos para a Madeira, começamos a considerar o próprio território da ilha como uma possível personagem para o filme ou um espaço criativo para a narrativa em si, como queiram descrever. Isso ocorre porque a Madeira tem esse lado exuberante, mas ao mesmo tempo instável, como o próprio filme faz referência constantemente. Para mim, a experiência de estar na Madeira é estar sempre em um lugar que parece prestes a desmoronar. Existe um confronto entre o que foi construído pelos seres humanos e o que já era inerente à ilha, o que considero bastante impactante. É uma experiência... Quase uma experiência sensorial nesse embate entre esses dois elementos. As vias rápidas que atravessam e perfuram a ilha já eram uma ideia que procurávamos explorar em "Super Natural", que é esse confronto entre o que é humano e o que é não-humano. E essa ideia de "Super Natural" surgiu antes mesmo de eu entrar no projeto.

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Jorge Jácome na Berlinale, em 2022

O conceito da peça originalmente já continha muitas das ideias que acabaram sendo incorporadas no filme, e quando falo em ideias, refiro-me mais aos conceitos filosóficos que estão por trás do filme. Como é possível transformar esses conceitos em ideias cinematográficas? Como esses conceitos podem ser transmitidos através de imagens, situações, paisagens e sons? Como tudo isso pode ser construído para criar algo que funcione de uma perspectiva cinematográfica?

Visto que fala nesse conceito de “Super Natural”, gostaria que me falasse sobre isso mesmo, o título. “Super Natural”, por exemplo, no Brasil é sinónimo de sobrenatural, o paranormal, enquanto no português de Portugal resume-se a algo extraordinário. 

A mesma ideia aqui: O que defendemos é a ideia de que o conceito de "natural" não existe. E aqui, em língua portuguesa, o termo "natural" abrange diferentes significados, mas principalmente se divide em duas vertentes. Por um lado, temos o natural como tudo aquilo que está relacionado com a natureza, o que nos rodeia, ou o que precede o humano. Por outro lado, temos o natural como uma questão de representação, seja no cinema ou no teatro, referindo-se à ideia de um ator representar de forma "natural" ou "naturalista". No entanto, não acreditamos nessa noção, pois não é possível dizer a alguém: "muito bem, agora age natural" ou "age naturalmente". Portanto, ao recusarmos a ideia do natural, decidimos refletir sobre esse conceito. O que queremos fazer é amplificar essa ideia do natural e transformá-la no supernatural. Onde todas as coisas, tanto humanas como não-humanas, estão incluídas nessa noção do que consideramos ser ou não natural. É uma reflexão para pensar sobre isso.

Um ponto muito interessante do seu filme, que já havia abordado numa entrevista e que é um dos elementos omnipresentes em "Super Natural", é a “voz”. Associamos uma “voz” e essa universalidade da linguagem artificialmente criada. Julgo que mencionou nessa mesma entrevista que o filme poderia ser exibido na Alemanha com legendas em alemão, poderia ser mostrado em Itália ou na China com legendas em italiano ou mandarim, respectivamente, mas aquela “voz” indecifrável tornava-se muito pessoal para todos. Fale-me sobre essa “voz” e esse conceito de universalidade, e sobre essa “personagem invisível”, se podemos chamar-lhe assim.

Durante o processo de montagem, e com um texto definido, já tínhamos conhecimento de que seria essa “voz”, a sua natureza. Na realidade, essa "voz" é o próprio filme a comunicar connosco. Por exemplo, se estamos no cinema, é a tela que dialoga connosco; se estamos na sala de estar, é a televisão; se estamos a assistir ao filme num telemóvel, é o próprio dispositivo que está a comunicar. Uma "voz" que assume uma natureza imaterial.

No entanto, a questão do que é o "super natural" torna tudo bastante complexo, pois quando é o filme a falar connosco, assumimos que um filme é composto por vários elementos, várias "coisas", e acredito que é isso que define essa mesma "voz". Se perguntarmos a diferentes espectadores o que eles acham que essa voz representa, certamente receberemos respostas completamente distintas. No início de "Super Natural", é a escuridão da tela que dialoga connosco, mais tarde, são as luzes, e sequencialmente um caranguejo ou um golfinho de plástico. E essa entidade não apenas inicia uma conversa com o espectador, mas também com os próprios intérpretes, assumindo, por exemplo, o "papel" de uma planta e dialogando com outras plantas. O filme cria essa camada que une todas as "coisas", incluindo o espectador, e convida-os a se comunicarem com todas as outras "coisas". É uma espécie de utopia comunicativa.

Esta “voz” transgride a quarta parede e ao mesmo tempo não a quebra, é como se houvesse uma quinta dimensão neste filme [risos], algo em jeito transversal ou transcendental, como bem entender. 

Existe a ideia de um narrador... vamos chamá-lo de narrador para tentar encontrar uma palavra que consiga caracterizar essa "voz"... que aparenta conhecer tudo e todos. Parece estar a tentar explicar, discursando sobre os elementos mais densos e complexos (e até mesmo duros), como se quisesse simplificar-nos a origem de todas as "coisas".

Para onde o mundo está a caminhar? Do que são feitas as histórias? Do que são feitos os corpos? E assim por diante. Existe de facto uma tentativa de estabelecer um contacto com quem está a assistir.

Sobre os intérpretes e os seus corpos, gostaria de falar sobre o meu trabalho com eles. Houve espaço para improvisação ou o projeto já estava pré-estruturado através de um "storyboard", por exemplo?

A melhor maneira de falar sobre o filme é dizer que ele se foi construindo. “Super Natural” não existiria da forma como existe neste momento se não fosse também pela participação criativa dos próprios intérpretes do "Dançando com a Diferença". A maior parte das contribuições criativas do filme surgiram a partir das suas improvisações, sugestões de locais de filmagem, personagens que gostariam de interpretar e roupas que gostariam de usar. Foi uma acumulação criativa, onde o meu papel como realizador consistia em reunir, observar e compreender como seria a forma final deste filme. Acredito que o trabalho do realizador não se limita apenas a implementar um argumento pré-escrito, mas também a ter tempo para observar o que nos rodeia, trabalhar com pessoas próximas e, a partir daí, o filme vai surgindo. Esta abordagem reflete muito o meu trabalho com as artes performativas, onde o processo criativo de acumulação e a oportunidade de compreender o que se vai fazer são mais evidentes do que num processo cinematográfico convencional, onde geralmente se escreve um argumento, filma-se o que foi escrito e depois se edita o que foi filmado.

Durante este processo de adaptação para a tela, surgiu a ideia de transformar isso em uma instalação? Ou o próprio filme já é uma instalação?

Neste momento, o “Super Natural” é uma obra cinematográfica, por isso é que também é tão importante hoje o filme estrear comercialmente em sala. Serve quase como uma reivindicação política a sua presença nas salas comerciais de cinema. Este filme, com estes performers, feito desta forma, pode e deve estar em salas de cinema comerciais. Não me lembro se alguma vez começámos a pensar no filme como uma instalação, mas acho que não. Quando começamos a perceber que a duração do filme estava a ser prolongada, durante a montagem, comecei a perceber que tinha muitos minutos de material. Nós percebemos então que era uma longa-metragem, um filme para ser visto no cinema.

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Ou seja, não estava planeado sequer ser uma longa-metragem …

Não, não estava. Nem sabíamos o que se iria tornar.

Acidentalmente, tornou-se a sua primeira longa-metragem [risos].

Totalmente. E isso também é muito interessante porque há muita pressão em fazer a primeira longa-metragem, e as minhas curtas-metragens já tinham tido algum sucesso. Então, muitos realizadores e realizadoras sentem essa pressão de "qual será a minha primeira longa-metragem?" No meu caso, tive a sorte deste convite e de um filme que me orgulho muito, que gosto de ver, mostrar e falar sobre, acabar por ser acidentalmente a minha primeira longa-metragem.

Pega na sua aclamação de há pouco, “o seu filme nas salas de cinema é uma reivindicação política”, e sabendo que “Super Natural” foi concebido como um experiência de sala, pergunto, de forma hipotética, se haveria o mesmo impacto de ver este filme num computador. Ou seja, sobre esta posição de ver um filme em sala, sobre a questão de ser sensorial e será que este filme ganharia uma nova vida numa outra plataforma? Ou seria uma espécie de experiência unicamente de sala?

Não, o filme foi feito para ser visto em sala, porque a própria sala de alguma forma influencia a experiência do filme que estamos a ver. Se a sala cheirar a mofo, se as cadeiras forem desconfortáveis ou se a sala for clara em vez de escura, tudo isso vai afetar a forma como vemos o filme. Essa voz de que estávamos a falar também nos convida a olhar à nossa volta, a sentir a respiração dos outros espectadores. A sala de cinema faz parte da experiência cinematográfica.

Agora, algo que não consigo controlar, e é bom que seja assim, é que os filmes têm um ciclo de vida e uma trajetória, por isso é possível que seja disponibilizado em plataformas de streaming, na televisão ou em canais de televisão. Não consigo controlar onde o filme será visto. Após o período de exibição nos cinemas, se houver interesse, existe a possibilidade de ser visto em outras plataformas. O espectador então escolhe se quer assistir no telemóvel, no computador ou na televisão.

Nesse aspecto, o de ver “Super Natural” em sala … e aqui vou usar um termo que não gosto … como “venderia” um filmes destes, designado por OVNI em muita da imprensa e espectadores, ao público?

É muito desafiador atrair os espectadores para assistir a qualquer filme nas salas de cinema. Se já é difícil convencê-los a assistir os outros filmes, então experimentem este. Porque a experiência pode valer a pena, mesmo que seja apenas pela oportunidade de experimentar algo o qual nunca se viu antes ou ver algo de uma maneira diferente. O filme também brinca com os diferentes estilos cinematográficos, diferentes abordagens de filmagem e diferentes formas de conectar ideias. Portanto, a nossa maneira de apelar ao público é simplesmente dizer: "Venham".

Há pouco, falou-me na "pressão da curta para a longa". Gostaria de perguntar se já sentiu essa pressão e o porquê de continuar a encarar o formato curta como um tubo de ensaio para a longa-metragem?

Nunca tive essa pressão, mas também posso gabar-me de ter a sorte dos meus projetos desenvolverem-se gradualmente e também de nunca encarar a curta como um cartão de visita cinematográfico com vista a transitar para o formato longa. Essa nunca foi a minha perspetiva em relação às curtas. Aliás, estou a mostrar esta longa-metragem agora, mas já estou a trabalhar numa nova curta. Gosto desse ping pong de formatos e ideias, gerenciando-os gradualmente, sem pressas, e que tenham um corpo que me interesse. Não tenho pressão financeira, nem artística para fazer diferente do que já faço.

Pode falar-me dessa nova curta-metragem?

Posso. Esta curta, de uma forma sucinta, reunirá cogumelos “mágicos” e pombos-correio. Também estou a preparar uma nova longa-metragem, inspirado nos fenómenos do Entroncamento. [riso]