Falando com Giuseppe Garau: "fazer filmes é uma doença e não consigo superá-la"
Giuseppe Garau e a atriz Giulia Mazzarino durante a rodagem de "L'Incident" (2023)
Vencedor do Grande Prémio de Júri da última edição do Slamdance, “L’Incident” é um filme convite mas cujo dito convite é venenoso, colocando o espectador nos dias negros de Marcella, mãe divorciada que após um acidente rodoviário entra em vertiginosa queda livre qunato à sua (não) estabilizada vida. Encontra trabalho - precário e de risco - como “reboqueira” na cidade de Turim, recorrendo a métodos pouco éticos e nada ortodoxos para que possa sobreviver numa selva de asfalto preenchida por predadores de toda a espécie. Giuseppe Garau ordena-nos a sentar no lugar de pendura ao lado deste desespero humano, numa primeira longa-metragem que, para além de conquistar público e júri do referido festival, se entende como a possibilidade de estarmos perante um futuro nome do cinema italiano.
O realizador e argumentista, aceitando o convite (um convite por outro convite) do Cinematograficamente Falando…, aborda-nos sobre o processo de criação e de rodagem desta história, e da sua doença que responde pelo nome de Cinema.
Começo com a questão geral de qualquer entrevista, como surgiu a ideia para este filme?
Há alguns anos, estava a conduzir com a minha família e um camião chocou contra nós. Poucos momentos depois, estávamos rodeados de reboques. Mais tarde, percebi que tinham como método prometer dinheiro às pessoas que testemunhavam acidentes e os chamavam de imediato. Comecei a interessar-me por este mundo sombrio, fiz pesquisa, passei algum tempo com eles e comecei a imaginar uma história ambientada nesse mesmo meio.
É sabido que “L’Incidente” foi filmado em película, como primeira longa-metragem é um desafio hercúleo e cada vez mais raro. Pergunto os desafios que teve com esta decisão e o gesto, o que significa ou qual a reivindicação?
Foi muito desafiante, também porque filmamos sem um monitor, por isso não podíamos ver o enquadramento previamente e não podíamos rever as filmagens, tínhamos apenas de confiar no processo. Mas tenho de dizer que também foi uma ótima oportunidade para nos concentrarmos mais no que acontecia à frente da câmara ao invés de passar tempo a olhar para um ecrã LCD. Desta forma, todos nós estávamos realmente a viver o momento e as performances dos atores, foi uma experiência especial.
Gostaria que me falasse sobre a escolha de Giulia Mazzarino para o protagonismo, e sobre o trabalho em construir esta Marcella. O que tinha em mente e o que acabou por resultar?
Já trabalhei com Giulia Mazzarino antes, por isso sabia muito bem o talento que ela tem e escolhê-la para o papel principal foi uma decisão natural. Ela estava extremamente ocupada a trabalhar em teatros antes das filmagens, por isso não tivemos muita oportunidade de trabalhar na construção do papel ou de ensaiar. Apenas lemos o guião uma vez, juntos e depois ela estava no set, todos os dias, em todas as cenas, com o seu incrível talento e dedicação. Para construir a personagem, inspirou-se na minha personalidade, mas também tirou muito da sua própria. No final do dia, foi uma questão de confiança. Eu confiava nela e ela confiava em mim. Foi um ótimo exemplo de trabalhar juntos na arte. Confiamos um no outro e ambos estamos muito felizes com o resultado dessa união.
“L’Incidente” segue narrativamente uma perspetiva de lugar de pendura, sentimo-nos reduzidos aquele lugar, e tendo em conta a passividade da protagonista, ficamos impotentes para com os incidentes que acontecem no ecrã.
Concordo, somos forçados a partilhar o mesmo sentido de isolamento e passividade de Marcella. Mas também, dado o facto de a vermos mas não nos mostrarem o que acontece à sua frente, o público também é livre para imaginar o mundo ao seu redor. Portanto, estamos conscientemente limitados, mas como o filme não mostra tudo com imagens porque estamos presos a um olhar, o nosso inconsciente também é capaz de correr livremente através da nossa imaginação.
"L'Incident" (2023)
Há um acidente que marca um radical abanão na vida de Marcella, a partir dali ela estará em queda livre na sua consciência moral, primeiro pelo trabalho que arranja, em busca de acidentes e sinistralidades e os métodos com que efetua tal cargo. Sinto que através desse percurso, somos levados a uma representação da sociopolítica de Itália?
A sociopolítica não foi o meu foco principal enquanto escrevia o guião, mas sou influenciado por tudo o que acontece à minha volta, tudo o que leio ou me preocupo. Não foi intencional, mas não posso negar que é um retrato de como é viver e trabalhar no nosso país. É um lugar bonito mas também muito confuso onde não há meritocracia e é sempre necessário encontrar uma forma criativa de sobreviver, como Marcella faz no filme.
Marcella é constantemente intimidada por figuras desconhecidas que tentam impedi-la de trabalhar, uma espécie de 'máfia'. Pergunto se houve inspirações na realidade e se estes movimentos ilícitos operam nas ruas?
Essas personagens são para mim uma representação divertida de um problema real italiano que é o crime organizado. A indústria dos reboques não tem uma ligação direta com a máfia (pelo menos que eu saiba), mas a maioria das coisas no filme são verdadeiras: realmente deixam cartões em cruzamentos prometendo dinheiro se os chamarem se virem um acidente e realmente queimam reboques dos concorrentes. Durante as filmagens do filme, queimaram cerca de cinco reboques na nossa cidade.
Depois de “L’Incidente” estava realmente preocupado com a saúde e consciência de Marcella. Questionando de forma um pouco abstrata, ela ficará bem? O que o levou a escrever e dirigir uma personagem que se humilha tanto ao longo do filme?
Não a escrevi pensando em humilhação, queria ver o que aconteceria se colocasse uma personagem de coração gentil num mundo violento, sombrio e competitivo. É interessante ver como a vida pode ser difícil se não fores um predador mas sim gentil e bondoso. Mas acredito que o mundo te recompensa no final. Passámos tempo com a Marcella durante os seus dias mais negros, mas acredito que ela ficará bem. Ela sempre encontra uma forma de sobreviver.
Quanto a novos projetos?
Estou de momento a desfrutar da corrida de festivais de “L’Incidente”, mas no fundo da minha mente uma nova história está a surgir e a ganhar forma. Sinto que ainda tenho muito a dizer, mas esta indústria é tão difícil que não sei se encontrarei a energia e o dinheiro para fazer um novo filme. O que sei é que provavelmente farei tudo o que puder para o fazer, porque fazer filmes é uma doença e não consigo superá-la, mesmo que por vezes gostasse de encontrar um emprego normal.