Falando a uma só voz(es): Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, realizadores de "Estou Aqui"
"Estou Aqui", o título, ou talvez o manifesto de quem deseja fazer-se ouvir perante um ruído social, diante da sua condição, da sua sociedade, da sua própria intenção. Em 2020, no auge do confinamento provocado pela pandemia de COVID-19, a Câmara Municipal de Lisboa decide activar o maior pavilhão gimnodesportivo da cidade, o Casal Vistoso, para albergar temporariamente desde pessoas em situação de sem-abrigo até outros “seres” em condição supra-precária. No seio dessas operações de reabilitação, dois alunos de documentário partem em voluntariado, num gesto que viria a culminar neste filme: um objecto que procura, nestes corpos (e em tantas das suas não-presenças), algo habitável. Algo que se expanda para lá do mero acto de solidariedade.
Depois de Tiago Hespanha — produtor, realizador e tutor —, é agora a vez da dupla de realizadores, a húngara Zsófi Paczolay e o francês Dorian Rivière, aceitar o convite do Cinematograficamente Falando... para falar sobre este projecto, como também o desafio de responderem a uma só voz, tal como haviam feito em "Estou Aqui".
O filme documenta um abrigo que, apesar das dificuldades, conseguiu estabelecer um raro sentido de comunidade no panorama social português. Como foi lidar com a transitoriedade deste projeto, sabendo que podia desaparecer a qualquer momento?
É muito bonito da tua parte destacares essa qualidade do projeto, é algo que só percebemos verdadeiramente mais tarde, depois de terminarmos as filmagens, quando os coordenadores originais tiveram de sair e o abrigo foi entregue a outras organizações. Com o tempo, o projeto foi perdendo a sua essência, até quase desaparecer por completo da cidade. Na altura, não tínhamos plena noção de quão precioso e fugaz era tudo aquilo.
Quando voltámos, um ano depois, para visitar a versão "permanente" do abrigo, que já tinha mudado imenso, sentimos que o espírito era outro. A emergência provocada pela pandemia abriu subitamente um espaço, na cidade e na sociedade, onde se reuniram condições muito específicas que tornaram este lugar único possível. Era uma sociedade em choque com a súbita e profunda disrupção da pandemia, uma autarquia que respondeu com rapidez, e uma coordenadora visionária e multifacetada, a Teresa Bispo, com a sua equipa extraordinária, que conseguiu pôr tudo a funcionar com uma rapidez e um cuidado incríveis.
E também havia o estado emocional das pessoas em situação de sem-abrigo na altura — pessoas que, em circunstâncias normais, talvez não tivessem optado por entrar num abrigo, mas que, pelo medo e pela incerteza, decidiram arriscar. O facto de o abrigo estar instalado num pavilhão desportivo, onde todos partilhavam um espaço comum, também teve um impacto. Aquilo parecia um acampamento: não havia espaços privados, e todos tinham de colaborar nas tarefas diárias. Isso gerou um sentido de comunidade muito forte. As pessoas criaram laços profundos entre si.
Esse sentimento não se transportou para o abrigo permanente. Em parte porque o espaço já não era tão interligado, e os rituais do dia-a-dia eram diferentes. Olhando para trás, percebemos que foi mesmo um momento muito especial nas nossas vidas.
“Estou Aqui” observa a realidade da população em situação de sem-abrigo num contexto de pandemia, mas a crise da habitação e a marginalização são problemas que já existiam muito antes da COVID-19. Sentiram que este abrigo foi um verdadeiro experimento com potencial para soluções futuras, ou apenas um alívio temporário?
Sentimos que foi mais do que um alívio temporário, foi um ponto de partida especial, que mostrou o potencial para soluções de longo prazo. Não só no que diz respeito a futuros abrigos, mas também a nível social, enquanto comunidade. O que tornou este abrigo tão poderoso foi a forma como os coordenadores o geriram.
Para nós, o valor mais importante deste projeto é que ele trouxe soluções reais, mesmo para os problemas mais complexos. Mostrou que, com vontade e ação por parte de indivíduos, num contexto de comunidade inclusiva e horizontal, é possível fazer a diferença. Durante a pandemia, todos estávamos com medo, numa enorme incerteza, e por causa disso muitas barreiras habituais foram ultrapassadas. A cidade teve de responder a um problema que, em circunstâncias normais, costuma evitar ou não consegue enfrentar devidamente.
De repente, surgiu um espaço. Havia algum (embora limitado) financiamento - vindo do município, de organizações, de empresas grandes e pequenas - e tudo isso acabou nas mãos de trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa que tinham vontade genuína de ajudar e uma visão clara do que era preciso fazer. Um dos pilares dessa visão foi a estrutura horizontal do projeto, um modelo não hierárquico, onde as responsabilidades eram partilhadas e todas as vozes contavam. Havia uma transparência real entre a equipa e os residentes: todos comiam a mesma comida, todos eram bem-vindos, independentemente do passado ou da situação de vida. Essa abordagem criou confiança, e com essa confiança, abriu-se uma dimensão rara.
Uma dimensão de cuidado, onde o estar junto fazia sentido, onde a cura era possível, e onde a solidariedade e a curiosidade podiam crescer.
Zsófi Paczolay e Dorian Rivière
O documentário acompanha Tiago e Plácido como figuras centrais desta comunidade. O que vos atraiu especificamente nas histórias deles, e até que ponto sentiram o peso da responsabilidade em retratá-los de forma justa?
Inicialmente, imaginávamos o filme como um retrato do abrigo em si, como funcionava, e como seria a experiência de alguém desde a chegada até à saída. Mas desde cedo percebemos que seguir alguém em tempo real seria demasiado intrusivo. As pessoas estavam a atravessar momentos muito íntimos e delicados. Quando apresentámos a ideia do filme à comunidade, o Tiago e o Plácido foram dos primeiros a aproximar-se de nós, mostraram abertura e curiosidade, e ajudaram-nos a mover-nos com cuidado naquele espaço. O que nos atraiu verdadeiramente foi a forma como participavam ativamente na gestão do abrigo.
O Tiago estava sempre disponível para assumir responsabilidades, especialmente com reparações e tarefas técnicas. Ele partilhava connosco o que ia vivendo, com uma abertura que era rara. A história dele tocou-nos muito, porque vinha de muitos anos a viver na rua, e agora víamos nele uma esperança real nesta nova estrutura, enquanto começava a fazer planos para o futuro. A forma como refletia sobre a sua própria vida era rica e generosa, o que nos fez querer acompanhá-lo mais de perto. O Plácido, por outro lado, revelou-se um verdadeiro performer, cheio de energia, sempre o primeiro a ajudar, a limpar, a reorganizar o espaço. Era muito divertido, adorava brincar connosco e com os outros, mas também conseguia mergulhar fundo em si próprio e contar histórias da sua vida que nos impressionaram profundamente. Tinha uma força e um orgulho que nos tocaram desde o início.
À medida que ficávamos mais tempo e continuávamos a filmar, eles foram-se tornando naturalmente as personagens principais do filme, a representar-se a si próprios, nos seus próprios termos. Com o aprofundar da relação, eles também se envolveram mais com o projeto do filme. Sentíamos todos que havia ali uma missão partilhada: deixar um registo daquele lugar e da sua experiência, independentemente do que viesse depois. O nosso processo foi sempre baseado na confiança. Íamos verificando com eles se queriam partilhar determinadas coisas, se se sentiam confortáveis com a nossa presença em certas situações. E à medida que a relação crescia, tornou-se também importante estar lá para apoiar, nos momentos mais difíceis. A generosidade deles acompanhou-nos em todo o processo e deu-nos força para assumir a responsabilidade de os retratar com o máximo de respeito e justiça.
Na fase de montagem, trabalhámos com a editora Joana Góis, cuja sensibilidade para histórias humanas foi essencial. Filmámos durante mais de seis meses, captando inúmeros elementos e pessoas que poderiam ter enriquecido ainda mais o retrato daquele espaço. Embora o foco principal tenha ficado no Tiago e no Plácido, também documentámos o trabalho da Teresa na coordenação do programa e aspetos únicos do abrigo — como a liderança transparente, as decisões participadas e os rituais coletivos do dia-a-dia.
Ao optar por centrar a narrativa neles, significou, infelizmente, deixar de fora muitos momentos e histórias valiosas de outros participantes. Essa dor diária durante a montagem foi necessária para manter a clareza da narrativa. A forma como o Tiago e o Plácido aparecem no filme — com dignidade e cuidado — deve-se, em grande parte, ao trabalho preciso e sensível da Joana. Chegar à versão final levou mais de um ano de montagem rigorosa.
A presença da câmara num espaço tão delicado poderia ter criado uma barreira entre os realizadores e as pessoas retratadas. Como foi o processo de construção de confiança e integração nesta comunidade?
Chegámos ao pavilhão desportivo do Casal Vistoso no final de abril de 2020, mesmo no início da pandemia, com a intenção de sermos voluntários. Queríamos conhecer e apoiar pessoas em Lisboa de forma direta e significativa. Desde o primeiro dia, ficámos profundamente tocados e inspirados por aquele lugar. Era algo que nunca tínhamos vivido antes. Partilhávamos refeições, histórias, gargalhadas, cigarros; ouvíamos, jogávamos, conversávamos, e sentíamos o pulsar de algo raro. Durante os dois primeiros meses, nem sequer pensávamos em filmar, parecia impensável apontar uma câmara a pessoas num momento tão vulnerável.
Mas, aos poucos — até porque estávamos a estudar cinema documental no programa DocNomads — a ideia começou a tomar forma. Quando a partilhámos com a Teresa, ela mostrou-se entusiasmada e encorajou-nos a apresentar a proposta à comunidade, durante um dos encontros regulares. Explicámos as nossas intenções, convidámos à colaboração, e deixámos claro que qualquer preocupação era bem-vinda e deveria ser partilhada.
A resposta foi profundamente comovente. Muitas pessoas expressaram que era importante serem vistas. A partir daí, o processo foi acontecendo de forma gradual. Uns dias continuávamos como voluntários, outros dias filmávamos. Com o tempo, passámos a fazer parte da “mobília” do lugar. Claro que, por vezes, chegavam pessoas novas que não sabiam quem éramos ou que não queriam ser filmadas, e isso foi sempre respeitado. Um desses momentos até acabou por entrar no filme, refletindo também as nossas próprias dúvidas sobre presença e percepção.
Foram situações delicadas, e mantivemo-nos sempre atentos, a fazer perguntas a nós próprios: Como honramos a confiança que nos foi dada? Como evitamos causar qualquer dano? E como podemos contar esta história de forma a respeitar todos os que fazem parte dela?
Apesar de toda a resiliência demonstrada pelos protagonistas, o filme também sugere uma certa inevitabilidade do fracasso institucional. Enquanto cineastas, qual foi o maior dilema ético: captar a esperança ou expor a negligência sistémica?
O nosso objetivo foi retratar a complexidade de uma situação onde a esperança e o fracasso coexistem. O ponto de partida foi, de facto, a sensação de falência sistémica — o subfinanciamento crónico dos programas sociais, a falta de uma política de habitação coordenada — realidades que nos rodeiam constantemente. Mas o que mais nos inspirou neste projeto foram os momentos de resistência e resiliência, tanto por parte das pessoas que viviam no abrigo como das que lá trabalhavam. É aí que reside algo poderoso. A negligência institucional pode estar sempre presente e continua a estar. Mas há sempre algo que podemos fazer. Podemos escolher como responder. Podemos influenciar quem nos rodeia.
Foi exatamente isso que a Teresa e a Madalena fizeram, de forma extraordinária. O amor e a confiança que trouxeram moldaram profundamente o ambiente do abrigo. No fim de contas, talvez essa seja a ação mais significativa que se pode ter: levar cuidado a um sistema quebrado e mostrar o que ainda é possível dentro dele.
Mantendo o foco na ética, tendo consciência do poder que uma câmara de cinema carrega, houve preocupações ou reflexões específicas sobre como filmar estas pessoas em situação de sem-abrigo?
Como já referimos, os primeiros meses que passámos no abrigo foram dedicados ao voluntariado: servir cafés e refeições, conversar com as pessoas, simplesmente estar presentes. Quando, mais tarde, nos apresentámos como realizadores, alguns até brincaram: “Vocês deviam mesmo fazer um filme sobre este lugar.” Mas, nesse momento, a ideia de filmar ainda nos parecia contraditória. Estávamos muito conscientes da história, e do risco, da forma como pessoas em situações precárias foram tantas vezes retratadas: com pena, julgamento moral, ou por um olhar distante.
Sentimos que precisávamos de aprofundar a relação com o lugar antes de levantar uma câmara. Fomos muito inspirados pelo trabalho do realizador português Pedro Costa, especialmente pela sua relação prolongada com comunidades marginalizadas e pela sua sensibilidade às dinâmicas de poder na imagem. O filósofo Jacques Rancière escreveu sobre essa abordagem, destacando como Costa desafia a divisão tradicional entre quem fala e quem é observado. Em vez de reforçar hierarquias, ele cria espaço para que as pessoas se expressem nos seus próprios termos.
Esse entendimento moldou a nossa própria consciência: refletir constantemente sobre o nosso olhar, a nossa posição, e o que significa representar o outro. As nossas experiências anteriores em trabalho social e em projetos performativos em contextos diversos também contribuíram. São projetos que exigem uma presença prolongada e relações sustentadas, que não terminam com o fim da filmagem. Vimos as conexões que criámos ali como algo que ultrapassava o projeto, não queríamos que fossem relações extrativas ou temporárias.
Ao ouvirmos tantas histórias, fomos confrontados com o nosso próprio privilégio: a sorte de não sermos nós a viver ali naquele momento. E, logo no início, ao discutirmos a ideia do filme com a Teresa, ela mostrou entusiasmo, mas também nos alertou: “Há muitas histórias difíceis aqui, mas este filme não deve focar-se apenas nelas, deve mostrar o quotidiano e a possibilidade de mudança.” Essa frase teve um grande impacto e fez-nos deslocar o foco para o cuidado, a transformação, e a intenção, mais do que para a dor individual.
Um dos métodos que surgiu naturalmente foi tratar o filme como uma espécie de reencenação colaborativa. Começámos com cenas inspiradas em rotinas que observávamos, com pessoas como o Tiago e o Plácido a participarem ativamente. Expúnhamos as nossas ideias, eles propunham os melhores momentos para filmar, escolhiam o que queriam dizer. Por exemplo, uma das primeiras sequências que filmámos foi a “chegada” do Tiago ao centro. Ele recriou esse momento, preparando a mochila com um cobertor, como se tivesse acabado de chegar da rua. Foi tudo pensado em conjunto, com base nas suas memórias.
Filmámos também atividades que para eles tinham significado: arrumar, consertar coisas, manter o espaço, formas de mostrar que se importavam. Estas pequenas ações foram a base da nossa integração: não éramos observadores passivos, mas participantes num quotidiano que nos acolheu. Aos poucos, passámos a filmar momentos coletivos - refeições, conversas, jogos, reuniões de grupo - onde se revelava um forte sentido de ligação e agência.
Houve um momento particularmente tocante em que os residentes, sentados em círculo, davam feedback sobre o programa. Pessoas que tantas vezes foram privadas de voz estavam agora a moldar algo juntas. Decidimos não filmar momentos aleatórios da vida, nem situações de dor, nem planos voyeuristas. Escolhemos focar-nos em situações com um propósito claro, que mostrassem como funcionava a comunidade, o esforço diário para mantê-la viva, e como era o envolvimento de cada um. As decisões éticas que tomámos moldaram a própria forma do filme: o ritmo narrativo, o foco visual. Mesmo assim, a pergunta permanece: será que podemos realmente mostrar este filme? O que significa, para cada pessoa, aparecer nele? E que custos invisíveis poderão surgir (agora ou no futuro) por essa exposição?
Não há uma resposta definitiva ou segura. Nenhuma reflexão ética ou cuidado formal dissolve completamente a complexidade de representar alguém. Só podemos continuar presentes nesse desconforto, manter-nos responsáveis, e continuar a perguntar: o que significa filmar alguém?
Falando do modelo Housing First, existe uma perceção de que estas soluções "experimentais" têm pouco espaço numa Europa onde o mercado dita as regras. Sentem que este filme pode funcionar como um manifesto político por um modelo de habitação mais humano?
Seria maravilhoso se o filme pudesse servir como um manifesto político, e, na verdade, foi algo que procurámos conscientemente. Estruturámos a narrativa com o objetivo de desafiar a ortodoxia económica dominante que encara a habitação como uma mercadoria de mercado, em vez de um direito fundamental. Durante a pandemia, muitas rotinas e restrições do sistema capitalista foram temporariamente suspensas, e isso permitiu intervenções públicas que, em tempos normais, enfrentariam resistência burocrática ou ideológica.
A filosofia do abrigo de Casal Vistoso aproximava-se bastante do modelo Housing First — que prioriza o acesso imediato à habitação, sem pré-condições, mesmo tendo surgido num contexto de emergência. O que esta experiência demonstrou, e o que esperamos que o filme articule com clareza, é que a falta de habitação não é uma inevitabilidade: é uma escolha política. Os recursos e o conhecimento para enfrentar o problema existem. Quando a Teresa e a sua equipa receberam um mínimo de recursos e alguma autonomia, criaram algo que funcionou. Isto mostra que o principal obstáculo não é prático, mas ideológico.
Queremos amplificar as vozes por detrás destes programas, porque o que elas estão a fazer comprova que soluções eficazes e humanas são possíveis, sobretudo num momento em que cada vez mais pessoas enfrentam dificuldades no acesso à habitação. O filme não documenta apenas um abrigo; documenta um sistema de valores alternativo que funcionou dentro dos limites da nossa ordem social atual.
O mais poderoso é a abordagem em si: oferecer ajuda real e concreta, que não se limita a um tecto. É também o acompanhamento, o cuidado contínuo, o reconhecimento da complexidade de cada pessoa: a saúde, o bem-estar mental, o sentido de pertença, a capacidade de trabalhar e de se sentir parte significativa de uma comunidade. São esses valores, essas práticas, que esperamos que o filme consiga trazer para o debate público como algo vivido, possível e merecedor de ser replicado. Uma alternativa concreta às abordagens individualistas e orientadas pelo mercado, que já provaram falhar perante a insegurança habitacional crescente na Europa.
O documentário adota uma estética observacional à la Wiseman, evitando intervenções diretas. No entanto, houve momentos em que sentiram a necessidade de intervir na realidade que estavam a filmar, ou mantiveram sempre uma postura estritamente documental?
Usámos diferentes abordagens durante as filmagens, incluindo reencenações e, de facto, métodos observacionais na sua maioria. Também houve muitos momentos em que conversávamos diretamente com o Tiago ou o Plácido, trocas que surgiram de forma natural e humana. Durante a edição, explorámos o uso de todos esses elementos, mas, eventualmente, percebemos que a linguagem observacional servia melhor o filme. Isso significou que tivemos de abrir mão de uma certa intimidade proporcionada pelas nossas conversas, mas, por outro lado, permitiu que o foco permanecesse no programa e nas trajetórias dos protagonistas, em vez de centrarmos a atenção em nós, enquanto cineastas. Pareceu-nos mais honesto dessa forma, permitindo que as suas ações e palavras falassem por si mesmas.
Num momento em que a crise habitacional afeta cada vez mais pessoas, vê "Estou Aqui" como um filme ligado a um momento específico, ou como uma representação atemporal de um problema estrutural que continuará a repetir-se?
Acreditamos que "Estou Aqui" capta um momento crucial que reflete uma tendência mais ampla nas nossas sociedades capitalistas modernas: o agravamento da crise habitacional e a crescente falta de resposta à situação dos sem-abrigo. A epidemia de COVID foi apenas um "acelerador", um momento de crise que trouxe à tona uma realidade subjacente que já vinha a piorar há anos. Estivemos no lugar certo, na altura certa, para testemunhar isso: uma forte vontade de encontrar respostas alternativas para a negligência sistémica, possibilidades de soluções conscientes e a longo prazo.
Nos tempos que pareciam mais desesperançados, nasceu uma comunidade que propôs uma metodologia crescente e sustentável. Insistimos no termo "metodologia" porque o que aconteceu naquele lugar foi muito bem pensado e organizado ao longo de mais de um ano de existência; definitivamente não foi uma questão de sorte ou acaso. O programa Housing First fez parte de toda uma metodologia inovadora, apoiada e aprimorada pelo programa, que tentámos transmitir através do filme. Por exemplo, esse programa não foi adequadamente apoiado e financiado nos últimos anos, embora um relatório de 2016 da Comissão Europeia conclua que os resultados foram muito bem-sucedidos. Relatórios mais recentes continuam a apoiar o Housing First como uma solução significativa e sustentável.
Desde que a iniciativa Casal Vistoso foi encerrada, em 2021, não foram fornecidas soluções comparáveis em Portugal. Tudo aponta para uma falta de transparência e vontade política em relação a este problema na Europa, e com as mudanças políticas e os tempos vindouros, a situação só tende a piorar.
Em relação aos novos projetos, irão continuar como dupla ou seguirão caminhos diferentes?
A pandemia foi um momento único para nós: estávamos a viver juntos em Lisboa, e essa experiência partilhada levou-nos naturalmente a fazer voluntariado e, eventualmente, a fazer este filme juntos. Hoje, vivemos em países diferentes e não temos nenhum projeto cinematográfico conjunto planeado no momento. Estamos a explorar os nossos próprios caminhos pessoais, a ver onde a vida nos levará a seguir.