"Existe uma espécie de 'cão raivoso' em mim", falando com Kris Hitchen, o ator de "Sorry We Missed You"
Mais uma vez, a dupla Ken Loach (realizador) e Paul Laverty (argumentista) atribuem a voz ao operário que sob a cadência da modernização trespassa de um sistema para outro, o “trabalhador independente” na era das novas tecnologias e aplicações. Uma ilusão ao qual Ricky acede, condenado a “trabalhar até morrer” para conseguir retirar a sua família do sufoco financeiro, isto sem saber que cai na armadilha viciosa destes novos dialetos de exploração.
“Sorry We Missed You” (“Passámos por Cá”) é o típico filme na arte de Loach, com toda aquela ode ao proletariado e à tão proclamada classe trabalhadora, só que desta vez reajustada a ameaças de “cara lavada”, que de uma maneira ou outra dialogam com o Brexit e as suas repercussões. E no centro dessa denúncia enfaixada na dramaturgia, encontramos um ator explosivo - Kris Hitchen – que gerou uma personagem através da sua experiência no ramo, não da atuação, mas da resistência para com a “selvajaria” do trabalho precário.
Falei com o ator durante a sua passagem em Cannes, onde o filme integrou a Competição Oficial. Na altura desta conversa, Kris Hitchen era visto como um dos preferidos à estatueta de interpretação, um homem que percorreu um longo caminho para estrear-se em grande no Cinema.
Como é que não ouvimos falar de si? [risos] Onde é que você esteve?
Basta olhar para o meu diálogo inicial, tudo aquilo é verdadeiro, não é apenas da minha personagem. Tive vários trabalhos ao longo dos anos. Trabalhei para sobreviver. Não sou ator, mas sim um canalizador e sei muito bem o que é ganhar para pagar uma renda. Sofri com complexidade e transmiti isso à minha personagem.
Mas não vim de uma família desinformada. O meu pai era diplomado e mesmo assim confinou-se a trabalhos de poucas pretensões. Uma pessoa faz o que faz para sobreviver. O que aconteceu, no meu caso, foi que tive aulas de atuação e um par de semanas depois já tinha um agente que me garantiu pequenos papéis na televisão. Até chegar aqui, obviamente.
Mas sempre foi apaixonado pela atuação?
Sabe, sempre fui conhecido como o “palhaço de turma”, sempre a fazer piadas, brincava e era extrovertido. Sempre fui o melhor bailarino, essas coisas, estão a ver. Ria-me na cara das pessoas de uma maneira particular. Isto pode soar algo infame, mas quando temos a capacidade de manipular à nossa volta, temos aptidão para a atuação. Talvez seja essa minha experiência que me abriu portas como ator.
Mas este seu desempenho é tudo menos sorridente.
Quando temos uma vida cheia, podemos canalizar qualquer experiência e distribuí-la em alguns momentos na vida de Ricky. Por isso, é fácil de manobrar.
Pegando no ínicio da nossa conversa, para criar o Ricky usou o seu passado?
Usei o meu passado sim, a minha experiência, a minha resistência pelo que passei em vida para chegar onde cheguei. Este papel requeria uma espécie de regresso às minhas “cicatrizes”, uma investigação à minha alma e às minhas emoções ocultas. Para fazer de Rick tinha que invocar as minhas lutas, aquela resistência que vos falei. De onde vim, não é costume erguemo-nos do chão, mas sim continuar a pontapear mesmo quando estamos estendidos. Como tal é necessário gerar esta motivação, a energia para fazer-voltar a estar de pé. E é essa energia que usei no Rick. Talvez seja por isso que fui escolhido para este papel. Existe uma espécie de “cão raivoso” em mim.
E foi fácil usar esse método com Ken Loach? O de vincular a sua experiência?
É curioso quando um realizador dá-nos as ferramentas necessárias para aprofundarmos a nossa personagem. Filmamos em seis semanas e o Ken e o Paul eram hábeis em criar situações que nos levam aos extremos das nossas emoções. Pode não parecer, mas por vezes tínhamos aquelas cenas onde nada acontecia, mas elas serviam de arranque para algo maior. E nesse percurso trabalhávamos emocionalmente a nossa personagem, porque tínhamos que estar preparados para o embate que a dupla nos preparava. Eram engenhosos nesta composição.
De certa forma, Ricky fala por toda uma classe trabalhadora que está a passar por mudanças na sua precariedade. Utilizou apenas a sua experiência ou fez investigação para que fosse possível elaborar uma personagem universal?
Bem, eu sou da classe trabalhadora, mas enquanto atores temos que fazer um trabalho de investigação. No caso desta personagem era necessário aceder a estatísticas e os relatórios políticos e sociais sobre o seu “ambiente”. Porém, não precisei nada disso. Eu conheço este dito “ambiente” e temos que ter conta que o Ricky está marcado para trabalhar até morrer. Isso deve-se a um sistema que falha com ele. Como tal, o Ricky tem que entrar neste mundo do trabalho por conta própria, que atualmente é de grande relevância económica e que dá uma falsa sensação de conforto. Pessoas como eu e como a minha personagem cedem a isto por causa de “falsas-sensações”. Existe esta independência, liberdade, emancipação, mas são apenas truques para nos afastar de um sistema fracassado. Este “trabalho por conta própria” é rodeado de mentiras que nos levarão a novos obstáculos. Tudo aquilo que vemos no filme é verdadeiro, isso, vos garanto.
Em Portugal é costume dizer-se que “trabalhamos até morrer” e em certa parte foi esta a ideia que nos impuseram desde os primórdios da nossa existência. O filme de uma maneira ou de outra aborda essa questão. Sempre seremos escravos do trabalho?
No Reino Unido nós temos uma frase que é: “Nós trabalhamos para viver, não vivemos para trabalhar“. E continuando a brincar com as palavras, grande parte dos ingleses tem uma hipoteca [“mortgage“] para pagar, que tem a referência de morte no nome (“mort-gag“), que logo nos dá a ideia de uma prisão, só que essa prisão é a nossa casa. E quando temos casa própria, temos que pagar taxas e impostos para o resto da nossa vida. Portanto sim, estamos condenados a este ciclo. Mas não é só no Reino Unido, todo o Mundo está rendido a isto. Curiosamente, ouvi numa conferência que se retirarmos as 8 pessoas mais ricas do Mundo, estaríamos a retirar 20% das riquezas mundiais. Ou seja, imagina estes 20% retidos em apenas 8 pessoas? A riqueza está mal distribuída.
E em relação ao Brexit?
[risos nervoso] Acho que se tem que ter cuidado ao falar sobre esses assuntos. Em relação à decisão só digo apenas que: se as coisas estão bem, para quê mudar? Estão a perceber? Agora, toda a campanha do #Leave foi uma fraude em que muitos “caíram”. Um monte de mentiras, mas é tarde demais. A cruz já estava feita na caixa. Aliás, nós somos todos culpados pela situação.