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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Eu sou o Capitão"

Hugo Gomes, 23.11.23

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Em junho de 2023, lamentavelmente comum no Mediterrâneo, mais uma embarcação de migrantes oriundos do Norte de África (maioritariamente) naufragou, resultando na perda de 800 vidas. A notícia, relegada a um rodapé pelos meios de comunicação ocidentais, rapidamente cedeu lugar à busca pelo submersível Titan no Atlântico Norte, operado pela Ocean Gate com 5 tripulantes, abastados entre eles, devemos salientar, com o intuito de observar as ruínas do Titanic. “Morreram todos”, foi desta e criticada forma que o pivô José Rodrigues dos Santos abriu o telejornal da RTP, e é com esta ruptura que desvendamos o desfecho desses “esforços”. Ou seja, enquanto chorávamos por cinco, 800 vidas não obtiveram tamanha solidariedade, apoio nem sequer “buscas incansáveis” do que restava daquela gente. O Mar Mediterrâneo, diante da crise migratória, havia-se convertido num cemitério marítimo, dessacralizado, e distanciado das nossas sensibilidades

Em setembro deste mesmo ano, em plena Competição do Festival de Veneza, Matteo Garrone (“Gomorra”, “Dogman”) apresentava o seu último trabalho - “Il Capitano” - filme que seguia a jornada de um jovem senegalês seduzido pelas “promessas do Primeiro Mundo”. Previsivelmente, a odisseia não será de todo feliz, e o rapaz, cuja inocência torna-se no maior adversário e igualmente aliado, é confrontado com os bastidores do “sonho europeu”, passando pela Níger, ao deserto do Saara e à prisão libanesa até chegar por fim, ao obstáculo marítimo. 

Etapas de sofrimento que Garrone ameniza por via de um tom fabulista (resquícios do seu “Il racconto dei racconti”, 2015), presente em delírios, miragens, sonhos ou escapes do protagonista, mas o pesado daquele cenário mantém-se como pintura de parede, relembrando ao espectador da rota dos infortúnios, dos que tentam alcançar a mundanidade que nós europeus nascemos com direito garantido. Desde o seu primeiro passo, o mesmo “passageiro” [leia-se, espectador], prevê na sua “bola de cristal” os desdobramentos deste sonho, as consequências, os antagonistas e o clímax, esse, justificando o título, o qual, numa estratégia burlona em que o nosso protagonista (mais uma vez, inocência como palavra de ordem) assume-se “capitão” de uma sobrelotada embarcação, cegamente rumo a Itália

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O “caminho marítimo” é desgostoso, sofrido, miserabilista, mas é a partir daí, com “terra à vista”, que Matteo Garrone joga o seu privilégio num imprevisto “conto de privilegiados”. Considerando a narrativa comum, ou a ausência dela,, o destino trágico de milhares de “aventureiros”, o realizador tentou prevalecer uma fantasia, um “happy-ending” abrupto ou inconcluso em jeito de manifesto à miserabilidade que estes “contos” trazem. Poderá ser uma boa intenção, servindo do Cinema como escape da nossa realidade, ao mesmo tempo trazendo consigo uma satisfação burguesa (contra a vulgarização da tragédia) e, consequentemente, uma romantização daquela situação em prol do nosso conforto da sensibilidade. É um italiano a dizer-nos, sobretudo, que “nós” europeus estamos absolvidos da culpabilização da jornada destes “peregrinos”, enquanto que na realidade, nós somos os traidores dos seus sonhos. 

Il Capitano” é, em todos os aspectos, um filme verdadeiramente competente, seja tecnicamente, performativo ou na descrição da sua “realidade”, distanciando-se da presença branca (não há uma única ‘personagem’ europeia, levando-nos a uma história inteiramente de quem viaja). Contudo, incentiva uma hesitação, à banalização trágica que tanto critica e igualmente à tragédia banalizada que emana enquanto espetáculo de emoções.