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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Eu e Godard. Godard e Eu.

Hugo Gomes, 13.09.22

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Jean-Luc Godard e Anna Karina no dia de casamento, foto de Agnès Varda

Ecos da canção de Clio pairavam na minha cabeça nesta manhã, só que ao invés de “Eric Rohmer est mort” ouvi “Godard est mort”. Por momentos não pude acreditar, quer dizer, 91 anos não era pêra doce, o seu desaparecimento estava longe do inesperado, mas … “A Morte de Godard” … planou em todos estes anos como um mito, um evento apocalíptico aludido como ameaça de uma morte cinematográfica anunciada, ou a destruição de tudo o que acreditávamos. 

Godard, por mais tonto que pareça [quem conhece a minha pessoa sabe o bem], fez parte da minha instrução cinéfila. Desde que descobri o cinema propriamente dito, “devorando” clássicos e diferentes olhares, grande parte canónicos, digamos de passagem, alguém me aconselhava um certo cineasta francês. Nova Vaga, dizia ele, uma nova perspetiva de Cinema, depois disso nunca mais seria o mesmo, assim prometeria. A verdade é que de Godard, comecei por isso mesmo, no início, pelos acossados e vidas viventes, desprezos e géneros binários, porém, foi um louco que me conquistou de imediato. “Para quem estás a falar?”, pergunta Anna Karina. “Com a audiência”, responde Jean-Paul Belmondo. Era um doido, quebrou a quarta parede, falou comigo … sim, comigo, pensei perante aquela “anormalidade” em frente aos meus olhos, e num pequeno ecrã. Mais tarde, sentados nas estribeiras de um porto, o casal iniciava uma discussão. "Porque estás triste?” O resto foi a citação das citações, olhares sentimentais por palavras racionais. 

Godard era “Pierrot Le Fou” na minha tenra idade. Eu sei, cliché, uma convencionalidade hoje em dia, perfeitamente endereçado à arrogância dos cinéfilos que competiam pelo mais obscuro dos obscuros. “Hipsters” diriam os mais mundanos. Deste lado, nada disso, Pierrot, Karina, Belmondo e o azul encharcado nas suas ventas, o apogeu do quão vibrante e automaticamente fresco poderia ser o Cinema. Passados estes anos ainda encontro ideias, experimentos, a dissociação das palavras com as imagens, o som com o movimento (Será que ouvimos realmente a música que habita na cabeça destas personagens, como a certa altura, um desesperante errante faz-nos crer?), o Cinema feito e refeito, atentado e tentado. O seu significado? Como responde Samuel Fuller naquela festa onde ninguém escute, onde ninguém dialoga: “Cinema é um campo de batalha. Há amor, ódio, ação, violência, morte ... em uma palavra: emoção.

Muitos dirão, “é Pierrot que amas, não Godard. Talvez essas vozes - os “godardianos” - tenham razão, ou talvez não. Eu e Godard, Godard e eu, a relação sempre foi tumultuosa em grande parte das vezes. Até porque Godard demonstrou-se um homem de ciclos, com várias mortes e vários nascimentos; o Godard político, o Godard experimentalista, o Godard professor, o Godard crítico em ensaios audiovisuais e o Godard existencialista, este último, como derradeiro sopro, gerar uma nova linguagem cinematográfica, nem que para isso tenha que “despedir das velhas”. Qualquer acadêmico saído da sua “gruta de conhecimento” cita Godard com a facilidade das facilidades. “Não gosto de Frémaux a dar lições, prefiro Godard”, certa vez li num estreante a crítico, erro dele em apoiar-se somente numa figura e não entender que Godard é um homem de quatro estações, existindo só nele a diversidade com que espelha o cinema. 

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A peculiar conferência de imprensa no Festival de Cannes de 2018, quando Godard apareceu aos jornalistas em videochamada

Continuando, recordo como fosse ontem, a tristeza com que saí da Sala Bunûel em Cannes [2018], naquela que seria a primeira sessão de “Le livre d’image”. Sim, tristeza, ao entender que Godard se colocava acima do próprio cinema, respondendo e desintegrando o misticismo de "Johnny Guitar" (“Ela mente”), e de seguida nos encher de imagens recortadas, dilaceradas, criadas e automaticamente a mercê da autodestruição. Será que o Cinema vale pouco para o mestre? O que pretendia com tudo aquilo? O poderia nascer naquela destruição? Ouvi aplausos ali, murmúrios acolá, o meu peito pesou, senti a boca seca e gritei: “O Cinema Morreu porque Godard deixou de acreditar nele”. Foram poucos aqueles que me ouviram, outros se riram, e quase todos eles, acenando com a cabeça, dificilmente conseguiam explicar o seu fascínio por aquela obra. Não os censuro, nem eu sei explicar concretamente o meu fascínio por algumas obras, quanto mais os outros. 

Godard transformou-se num símbolo, ora um ícone de um cinema passado em resistência, ora um messias de um cinema ainda por nascer. E talvez seja essa a sua verdadeira essência. Ele nunca era somente algo, era tal e o seu oposto, a cura e o seu veneno [fez chorar Varda, renunciou Truffaut, nós na minha garganta], a erva do rato assim por dizer. Disse adeus à linguagem, mas sem saber criou uma, nunca despedimos verdadeiramente do Cinema porque o Cinema é mais que Godard e ao mesmo tempo Godard é o Cinema. Mas que fique claro, eu não desprezo Godard, via nele como uma criança, e sempre fora, neste jogo cinematográfico, em plena descoberta de uma paixão. Por vezes o Cinema tem destas ‘coisas’, vivemos o suficiente até se converter num projeto visto e  revisto, reciclado e reutilizado. 

Bem, o mencionado dia chegou. A premonição apocalíptica concretizou. “Morreu Godard”, nunca pensei que tal anúncio se concretizasse. O Mundo mudou. O Fim de uma era [“The End” em letras garrafais], o início de uma outra. Vamos ter que aprender a viver sem ele, o Cinema precisará viver sem ele, nem que seja do seu fantasma, o espectro quase sebastiânico com que a acérrima cinefilia se viu refém nas últimas décadas. Sim, morreu a lenda, o sábio, o charlatão, a distopia, a utopia, o génio, o louco, o canónico, o influente, o eterno jovem e o duradouro velho. Morreu Godard, o homem que odiei amar e que amei odiar. Esta é a minha sincera vénia, quer ao seu espírito, à sua memória, aos seus órfãos. 

Adeus Jean-Luc, le Fou, a morte do Cinema, o renascimento do Cinema. Até tu “Deus”, morrerias um dia. 

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