Estamos com Sandra Faleiro!
Muita comparação com as primeiras comédias negras almodovarianas têm sido reunidas num consensual coro, da mesma forma que o encosto de Sandra Faleiro à magnética presença da diva do pastiche Carmen Maura. Contudo tentaremos abandonar por momentos essas vibes, que de certo correspondem a influências, e foquemos neste “Estamos no Ar”, o salto cumprido de Diogo Costa Amarante (“Cidade Pequena”) ao reino das longas, numa comédia dramática com o seu quê queer, mas sobretudo envolto numa atriz a merecer mais destaque que estes ventos lhe dão. Sim, ela mesmo, Sandra Faleiro.
A sua personagem tem tanto de figura aportuguesada e moderada, oprimida pelas cânones sociais ainda em vigor, como também rasgada pela tentação, essa fantasia ardente que reacende com faros tradicionais, ou seja, a farda repescada enquanto afrodisíaco do desejo sexual. Mulher de meia-idade, de seios fartos e cirurgicamente operados como doce chamariz ao(s) seu(s) vizinho(s), um pela boa conduta de vizinhança - um trabalho de lavandaria aqui e acolá como satisfação de necessidades - e do outro lado da janela em modo “Rear Window” encavalitado com a perversão de “Peeping Tom”, o flirt pelo desconhecido quando o Tinder é somente visto como engate pouco discreto.
Ela, sim, a nossa vedeta cinematográfica, aliás, de vários palcos, como pudemos “ver” [sendo o teatro nicho nestas lides] enquanto canibal sarcástica e de seduções nata em “O Livro de Pantagruel”, com encenação de Ricardo Neves-Neves. Há um elemento ultra-sexualizado na sua presença voluntariamente insonsa, como subjugada aos tabus da sua mente e as possibilidades deste prolongar delírios de coitos e abraços imaginários, mas é mesmo esse interior vandalizado, ou melhor, invadido que a acarreta-lhe medo. Um rato passeia alegremente no seu domicílio, roedor que provoca náuseas e insónias à personagem de Sandra Faleiro, sendo essa criatura uma representação animalesca do seu espírito pregado ao poder das suas sexualizadas projecções.
“Estamos no Ar” é um filme sobre sexo, respirando e suando por todos os esporos, revelando-se na sua essência uma ousadia como golpe desferido ao relato dos “bons costumes” à português de mandar. Entre Carloto Cotta ocultando a sua homossexualidade por entre fardas “emprestadas” (a identidade por via da vestimenta) e de Valerie Braddell (atriz que esteve em alta na curta “As Sacrificadas” de Aurélie Oliveira Pernet) a servir de peculiar viuva que na dominância do seu luto, solicita o corpo da sua melhor amiga para uma experiência quase frankensteniana, a de reavivar o seu falecido marido: personagens à deriva da sua sexualidade fragilizada detidas por uma sociedade que lhes dita como comportar.
Diogo Costa Amarante engendra a ratoeira de estéticas neon, de sonhos febris em esverdeadas luzes frias, e concretiza um mosaico à lá Beleza Portuguesa, o que se esconde, ou que escondemos nos nossos “refúgios”, sejam físicos [corpo e imóvel], sejam mentais e sentimentais? Porém, a sua conjugação de histórias repartidas não é de todo fluída, demasiado fragmentadas, como curtas em separação de bens que se reúnem em equivocadas e embebidas festas na combustão do álcool e de preservativos nos bolsos para alguma ocasião. Mas, no seu coração, no seu centro, deparamos com uma atriz que aos seus 50 anos ostenta a sua redescoberta “flor da juventude”. Estamos com Sandra Faleiro!