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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Está na hora do "cházinho"!

Hugo Gomes, 01.01.25

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Rezam as histórias que, quando os “seguidores” dos irmãos Lumière levaram o cinematógrafo para outros cantos do mundo, nomeadamente fora do círculo ocidental, muitas vezes contavam com tradutores. Curiosamente, estes tradutores não estavam ali para decifrar a língua, já que os filmes eram mudos ou simples vinhetas, e sim, para ajudar os nativos a compreenderem a linguagem narrativa, estética e formal evocada pela tela — como aquela história poderia ser traduzida aos olhos de 'estrangeiros'. Essa prática surge como uma tentativa de conectar duas perspectivas divergentes, diferentes formas de olhar e interpretar o mundo, e em consequência, como, hoje, essa visão acabaria por ser moldada (não totalmente) pelo olhar ocidentalizado.

Ao assistir “Black Tea”, percebemos uma cadência temporal muito própria, quase como uma espécie de atmosfera deslocada, um véu narrativo de acesso difícil para o gosto ocidentalizado e altamente “mainstreamizado”. O mauritano Abderrahmane Sissako (“Timbuktu”)  premeia essas antipodes, oferecendo-nos a história de Aya (Nina Mélo), uma mulher marfinense que após declarar o “Não” no seu casamento, exila-se da sua terra natal e instala-se em Guangzhou, a chamada “Cidade do Chocolate” naChina. Lá integra uma comunidade culturalmente diversificada, e passa os dias a frequentar tutoriais de chá lecionados pelo seu patrão, e amante (convém informar), Cai (Chang Han). 

Esses ensinamentos sobre paciência e a veneração pelo tempo necessário entre a difusão e o momento certo para captar o sabor aromático do chá estão alicerçados numa série de costumes e maneirismos. Estes revelam quase um back-to-back de um olhar estrangeirado, que nos aconselha sobre disposição, aprovação e a melhor forma de alcançar tal estado. Talvez seja por isso que “Black Tea” nos soa, por vezes, estranho — por vezes sem paladar. Essa necessidade de tradutores, que nos guiem num tempo diferente do que vivemos de forma acelerada e, por isso, irritada, não consegue evitar as fragilidades corrosivas da obra, nomeadamente, o seu exotismo e a fascinação oriundo de um olhar alheio.

Um realizador mauritano a tentar capturar a essência de uma personagem marfinense em terras orientais, compondo um cinema que procura dialogar com a China da seda e dos vastos campos de chá, dando mais tarde um saltinho por Cabo Verde na liquidez do grogue. Tal como Apichatpong Weerasethakul, que migrou o seu cinema para a Colômbia sem conseguir contornar totalmente a aura turística do projeto ["Memoria"], este "chá das cinco" de Abderrahmane Sissako demonstra que a patologia do exotismo não pertence exclusivamente ao Ocidente ou a "realizadores brancos."

Sim, após a água a ferver, as infusões de ervas calmantes não são propriamente cinema inventivo — apenas forasteiro para alguns.

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